home, sweet home
A
minha casa é digna de ser chamada de lar. Está prostrada numa rua cheia de
outras casas, outras famílias, mas o orgulho, insuflado de glórias e derrotas,
diz-me que a minha é a melhor, a mais bonita, a mais digna. Abençoa-me sem
estrilho, recolhe-me durante meses em que teimo não penetrar na sociedade,
manter-me desligada de tudo, apenas escutando...
As
janelas juntam, tão tipicamente, vidro mais madeira, soerguendo-se por três
andares de luxo e ostentação puramente imaginados, porque eu os quero assim,
impalpáveis, intocáveis (afinal, a imaginação é perpétua). A sala estende-se ao
longo de trinta metros quadrados, um cubo perfeito, com uma varanda no topo a
segurar vigília constante; o vão das escadas transpira óleo de cedro,
reflectindo o verde acetinado dos cortinados, que eu detesto veementemente: é
uma cor tão desmaiada que me deixa doente. As velas, por sua vez, derretem-se
até ficarem apenas cotos de cera a pingar passivamente; a luz que expelem é
tímida e baila no escuro, ao som de um discreto Chopin que tenho a tocar junto
à lareira. Quanto à cozinha, apenas merece referência o trem de panelas e
tachos, ou o serviço de loiça, profundamente brilhante, tão brilhante que me
aborrece: a minha casa tem de traduzir aquilo que sou, e eu sou fosca, como
todos.
É
frequente sentir-me vigiada por olhos alheios, que atacam, sem autorização, a
minha privacidade. Não sei a quem pertencem, nem tão-pouco se existem mesmo,
mas, por precaução, mantenho firmemente fechadas portas e janelas, excepto os
restolhos têm permissão para me incomodar.
Tenho
uma porta verde, de batente, a servir de escolta. É alta demais para eu a
transpor, e os cinco centímetros de madeira que a integram são impossíveis de
desfazer pela força do meu punho de fêmea frágil. Do outro lado, a escória
aguarda-me, pútrida de tanta leviandade. Oiço a televisão da sala anunciando a
sua publicidade suja; os meus vizinhos discutem a pureza do seu casamento; os
velhos dormem nas esquinas, embalados em caixotes das nossas maquinarias
novinhas em folha (e eles só querem um prato de sopa). Esta escória que corre
de banda, e vive aos pulos; jamais se sentam deste lado e atentam nas
palermices que lhe conspurcam a podre existência.
A
força de três Homens enche-me de fôlego, mas não lhe dou forma. Prefiro
escutar, e rir-me da agonia dissimulada por coisas que os Outros enaltecem. Não
sei se foi ontem, ou hoje; não se foi no conforto do meu sofá manhoso ou
embalada na frescura cortante e amarga do meu quintal, o que é certo é que
agora tenho a certeza que tudo isto me faria gorgolejar palavras que os
ofendessem, mas falta-me sentir o hálito a mentol ou o perfume do pescoço de
alguém, a respiração ritmada dos seus pulmões. Sim, isso faz-me falta, pois
estou só nesta casa.
Estou
só e o melhor, mesmo, é não pensar nisso; de cada vez que o faço ganho chagas
difíceis de curar, pequenas úlceras crónicas. O preferível, portanto, é sentir
a candura do meu esconderijo usando os cinco sentidos, e repito: apenas usando
os cinco sentidos.
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