o monólogo

.


Man and Arrow, por Cyril Berthault-Jacquier


.
Ora bom dia, não querendo eu ser, de alguma forma, inoportuno, permita-me que me sente. Não está esperando ninguém? Melhor, é que estava ali naquele canto desfrutando de um whisky velho e não pude deixar de reparar que a sua cara é diferente. De quem? Não é bem “de quem”, é mais “do quê”, é que eu não gosto muito de os tratar por “quem”, são mais “quê”. Não entende? É simples: “quem” é para pessoas, “quê” é para objectos, percebe agora? Ainda não? Não se aflija, pense apenas num objecto que, a existir, tem a existência mais absurda, porque existe morto, e mais triste que isso, existe sem força para ser algo mais do que aquilo que o destinámos a ser; porque está morto, e existe morto, compreende agora? Olhe, se quer que lhe diga, eu acho isso muito triste, e nisso mesmo pensava enquanto beberricava o tal whisky velho… Porque um objecto, isto é, o comum objecto dos dias que correm, é fruto de uma produção em série; uma tristeza, a meu ver, uma vez que esta indústria agora se alastra até nós, nós humanos, que afinal não somos mais que meros objectos. Somos caixas, a bem dizer. Sim! Caixas! Não, não! Exacto, olhe bem para as caras. Simetria, assim as traduzo. As mesmas feições, os mesmos olhos a fitar aflitos um copo quase vazio, o mesmo nariz tombado e ranhoso, a mesma boca descaída. Enfim, as mesmas trombas, se me permite. Sim, trombas, de trombudo, de mal-disposto, de sisudo. Agora pense numa caixa, ou numa série de caixas, as mesmas dimensões, a mesma forma em paralelepípedo rematado com uma tampa. Aquela postura de “a minha vida já devia ter terminado ontem” transborda tanto no rosto desconsolado dos humanos como nas faces cansadas das caixas. Que, no fim, não são os humanos mais do que as caixas que aqui se encontram, neste mesmo bar, e foram todas feitas com o mesmo propósito: serem infelizes. Claro, claro, tem razão, eu já tinha dito que os objectos são peças mortas com uma existência absurda; assim sendo, tomando esta gente como produtos do trabalho em massa, consideramos, por analogia, que têm a existência mais absurda, para além que são sempre muito infelizes, muito tristes, muito deprimidos, resistem ansiosos por se afogarem em álcool e definham tudo o que são e não são e até o que pretendem ser nessa mesma bebedeira torpe. Que agonia! Só falham numa coisa: vivem. É uma grande dor para uma caixa viver. Mas o senhor tem uma cara diferente! Não é composto por feições quadradas e bicudas. Vi-o a rir-se, grande prodígio nos dias de hoje. Não, não! Que ideia, sou agora médico! Sou contabilista, trato das contas das caixas. Ahah! Não me diga, mas isso é muito interessante, muito interessante! Pudera eu viver assim. Daí a sua descontracção, o seu sorriso genuíno, claro. Como o invejo, como o invejamos todos… Pudera eu viver assim, já lho disse. Quer um whisky? Sim senhor, grande resposta! Faça isso, faça isso, amigo, guarde bem os seus trocos e continue saboreando a sua omeleta. Realmente, deve ser uma alegria ao fim de… quantos disse? Dois? Três? Exacto, ao fim de três dias sem comer também eu sorriria para essa omeleta, ora aí está o problema das caixas, de todos nós: barriga cheia. Não há nada como a fome para dar uma nova cara a estes trombudos. E não é só fome de comida. Há muita fome que urge fazer-se sentir, não concorda comigo? Aposto que seríamos todos mais felizes se estivéssemos em abstinência uns dos outros. Que as pessoas cansam, e cansam-se. É sempre o mesmo, sempre igual. Já vai? Oh meu amigo, que riqueza tão grande a sua, faz muito bem em viver assim. Ser vagabundo é bom, agora vejo, se não fosse esta minha hipocrisia desmedida e a comodidade que me proporciona o hábito seria tão feliz como o senhor, e só precisaria de omeletas. Mas é assim a saudável vida que a gente de bem goza: a (des)afortunada fábrica que nos cospe é a mesma que nos devora, vá lá, teve a sorte de sair enquanto produto artesanal. Original, amigo, que ideia original!

**

Senhor Camus, baseio-me na experiência e como experiência inventei um monólogo; sim, senhor Camus, foi apenas uma experiência. Tal e qual. E também tenho um certo gosto pela curiosidade pura e crua, algo pueril. Não leve a mal, mas uma pessoa afeiçoa-se aos grandes escritos e aos grandes escritores. Principalmente às ideias que revelam os grandes escritos por obra dos grandes escritores. Só escrevo isto para que fique bem assente que me inspirei numa certa Queda, aliás, na maneira como a Queda foi (d)escrita. E é só, senhor Camus, que já o incomodei que chegasse.

Comentários

Mensagens populares