ah, mio ben solo in terra
Temos
um leito, um quarto escuro, uma almofada fria, a cinza na ponta do meu cigarro,
uma pilha de camisas, o mundo inteiro aos gritos do lado de lá das janelas
surdas. As sílabas atropelam-se entre silvos e grunhidos, e o vidro lateja, os
caixilhos pulsam, a casa toda abana violentamente; mas o teu corpo delgado de
mulher, acometido contra o tempo, morto no tempo e consumido pelo tempo,
pasma-se de tédio desse modo prostrado sobre o leito, mais surdo ainda que as
janelas porque, para ti, nada disso existe.
Acordaste,
esticas a mão com o intento de agarrar a minha, contudo, não sabes já o que é
uma mão, não a consegues conceber nitidamente. Apalpas o vazio: num segundo,
não consegues imaginar o que procuras, simplesmente porque, agora, foi a minha
mão que deixou de existir para ti. Deixaste de pensar a minha mão.
Há
tantas coisas em que deixaste de pensar! Vives intermitentemente entre o sono e
a vigília, embora, ultimamente, sejam mais as horas que passas deitada sobre o
teu lado esquerdo, de pálpebras cerradas e respiração ofegante, sempre muito
quente, e quantas dores se fingem dentro da tua cabeça! Mais ainda são as que
se apagam, anulam, destroem. Perdes o sentido da razão, e a realidade
tornou-se, verdadeiramente, numa mera ilusão: é no sonho que vives e no tédio
lancinante da tua figura que morres.
A febre queima os últimos cartuchos da luta que travas com os bacilos dos teus pulmões, é por isso que, de cada vez que acordas, uma mesa, um copo ou até a minha mão deixam de existir. Um dia, dar-se-á uma passagem rápida para um outro sítio. Está perto esse dia. Será um momento muito tranquilo, com sorte estarás a dormir enquanto te afundas nas trevas, isto é, no maior abismo da alma humana, e quando não vires mais nada do que negro, deixarás de conseguir imaginar a única coisa que, por essa altura, ainda existirá nos teus sonhos agradáveis: tu própria. No mesmo instante, acaba-se a escuridão: a tua alma é deserta e grande.
A febre queima os últimos cartuchos da luta que travas com os bacilos dos teus pulmões, é por isso que, de cada vez que acordas, uma mesa, um copo ou até a minha mão deixam de existir. Um dia, dar-se-á uma passagem rápida para um outro sítio. Está perto esse dia. Será um momento muito tranquilo, com sorte estarás a dormir enquanto te afundas nas trevas, isto é, no maior abismo da alma humana, e quando não vires mais nada do que negro, deixarás de conseguir imaginar a única coisa que, por essa altura, ainda existirá nos teus sonhos agradáveis: tu própria. No mesmo instante, acaba-se a escuridão: a tua alma é deserta e grande.
Morreste.
Antecipei-me ao próprio tempo, ainda estamos no momento em que apalpas o ar sofregamente, tentando agarrar uma peça perdida na tua mente. Olho-te com tristeza, do canto das camisas empilhadas, não adianta esticar o meu braço, nunca irias reconhecer a dor de tocar na ponta dos meus dedos e de os apertar um a um. Se te lembras, apagaram-se. Pronto, pronto, já chamei a enfermeira, ela traz-te umas injecções de cânfora que te sossegam num instante e te conduzem a esse teu delicioso e recente estado de (in)consciência.
O
poeta tinha razão, não tirámos o bilhete para a vida, mais vale não ser que ser
assim, um fantasma que finge ter corpo, ainda por cima um corpo tão enfermo,
com oásis a fazer de terra prometida no deserto ao lado!
Mais vale arrumar a
mala.
A tua está pronta, mio ben solo in terra.
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Comentários
Um bom texto, já o disse.