é só de mim que ando delirante, álcool
A pressão irrompe pelos ouvidos, enfia-se
em todos os buracos e canais da cabeça e arredores, aperta-se contra o cérebro
e etilhaça-se em pedaços de dormência cadente.
Então ela soube que estava bêbeda, que era
uma só no meio do esfregaço de multidão que a rodeava e que, além do monte das
camisas sujas de si, nada mais tinha. Que ninguém ouse dizer que é triste!
Quando não se possui, sequer, um corpo, habita o que resta num imenso balão que
rompe, molécula a molécula, a molécula gigante de Ar (não árgon, mas ar).
Colou as bochechas na janela, baixou a
persiana.
A rua apagou-se.
Batem asas de auréola aos meus
ouvidos,
Grifam-me sons de cor e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de
gumes,
Descem-me a alma, sangram-me os
sentidos.*
E a carne viva da visão luzia no escuro,
ofuscando de dor as lâmpadas penduradas no tecto descascado pela humidade. Gota
a gota, o sangue emaranhava-se nos ladrilhos do chão, corroendo a vermelho a
camada gordurosa que outrora os cobrira.
*Poema
cordialmente cedido por Mário de Sá-Carneiro, Álcool, e Angústia de
Dali.
Comentários
Os Nossos passos ecoam pelos becos escuros que Nos servem de cenário, eternamente. É o ruído de uma solidão acompanhada, fechada pelo Mundo que Nos não rodeia. Aberta, rasgada, com golpes veementes nos sítios errados.
Nossa.
Como sempre o fazemos. E os teus olhos aparecem com um brilho enternecedor que me descola os lábios; um brilho infantil que se espelha nos meus olhos… e na luz, Nossa, que ilumina momentaneamente as paredes, as lâmpadas partidas dos candeeiros de rua. E apagou. Efémera.
O medo que o tempo Nos devore impiedosamente. O medo que devore tudo o que quer que seja tudo, ou que devore o chão onde pisamos e não queremos pisar. O medo que os vôos, os Nossos vôos, terminem onde começaram. O nosso ser é ser assim.
És linda.
Colisão. Estrondosamente, tudo se precipita sobre tudo. Cada partícula minha e tua, perfeita entropia. O vermelho que trazes é combustível de Nós. O caos toma parte daquilo que não sabemos, da Nossa verdade, e é aí que, incontornavelmente, cristalizamos a razão…
Corremos. Dançamos. Os Nossos gritos são ouvidos por mim e por ti e pelos que, por trás do lixo empilhado no fundo da rua, se desvanecem em pó, de forma surreal, irreal, nunca real.
E eu digo-lhe. O sangue quente aquece por todos os vasos do meu corpo e dizes-lhe o que te peço, o que te imploro. Por favor.
E fôssemos Nós apenas sonho, ilusão. Que não existíssemos. Que não Nos esventrassem de cada vez que se ouve o baque dos ponteiros.
Sabemos que sim. As janelas entreabertas escondem outros tantos espectros, importunados com toda a Vida que o ruído, ensurdecedor, lhes carrega. O pó entranha-se no ar, espessando o nevoeiro frio da rua.
E a velocidade dos passos que damos, das rectas curvilíneas com que o cortamos e destruímos o mito. Fazêmo-lo assim.
Que não Nós.
Porque o frio é aqui e não estamos aqui. Somos Lá, longe, e aquecemos os corpos até à incandescência e frio é aqui. E borbulha dentro de mim e de ti, fervorosamente. Violência incontrolável de Nós próprios.
Deixa-me! Larga-me de ti! Eu quero parar aqui.
Chamo-lhe assim. Obrigam-me a chamar-lhe assim, tortura de Nós. Mentira de Nós. Dos outros.
Não me largues.
Deixa que sejamos reduzidos a gente, apenas. Não.
Falassem por mim. Falassem para Ti. Se o teu corpo fosse folha e tinta os meus dedos. Se falassem por mim!
Eu queria rasgar-Nos daqui. Arrancar-Nos daqui. Queria poder!
Diz-lhe, por favor! Diz-lhe! Deixa-me parar aqui, ficar assim. Deixa ser fim. Não queremos desvanecer… não nos deixes apagar aqui. O depois não existe aqui! Não há futuro…
Pára.