sobre(quase)tudo

Saldaste a tua dívida com a perda de uma perna, para duas, em par, te auxiliarem no caminho que se torce entre os buracos dos passeios descalços. Grossas gotas, gordas gotas, espalham-se no velcro do chapéu, nas almofadas do sobretudo – sobre um tudo a que se soma um quase para ser tudo na efectividade que lhe conferiu a língua e seus meandros lexicais; para ser corpo de homem na forma completa que o mesmo exige, por obrigação da natureza das coisas; para que o casaco possa ser sobretudo, e não sobretudo-menos-uma-perna: falta a perna, senhor, falta a perna, uma delas, a esquerda.
Escorria-te água pelas mãos nodosas, palmilhando os vincos que fazem cicatriz na tua pele velha e perfurada pelo calor, pelo frio, pelo peso dos sentidos, e também pela sua tenebrosa leveza, pelos grossos mantos de gente a quem apertaste, outrora, outras mãos, mais limpas e cuidadas, que estas que, hoje, são o segundo e o terceiro pé, por extensão e piedade ao que falha na tua conjuntura.
Mesmo assim, havia cinética a sair do esforço produzido pelos teus músculos, havia acção no suor que gelava de encontro à pele, e havia dor nos meus olhos pela dor que os teus expiravam.





***

Que dívida tão ténue temos nós para com Ele?
Possivelmente, pagamos pela fragilidade de um início que não tem meio, e é só fim; tão certo como este: .

Comentários

Rui Ramos disse…
Uma cena boa é que consigo imaginar-te como navegante da lua.
Outra é que já és algo, menina da mamã.
A outra é que não passamos de agregados de pó que qualquer dia vão voar ao vento, mas que até voarem podem orgasmicar, ou seja, ir tendo alguns prazeres pela vida, o que já é bom :P

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