ser cá, lá e todos


A viagem é, provavelmente, um dos maiores e mais maravilhosos empreendimentos humanos: aliada ao conhecimento de si mesmo, das sua limitações e, posteriormente, do espaço envolvente, apresentou-se como sendo a única alternativa válida para sobreviver num mundo novo para a espécie que agora se aprimorava nas lides da vida, ou não fosse esta o mais recente fruto do labor da filogenia.
Para cumprir tão velho propósito, não teve o homem alternativa a não ser construir caminhos, transportar-se, ir além das fronteiras e instalar-se na selva da vida enquanto eterno nómada.
 As viagens foram-se embrenhando nos meandros da semântica, isto é, cresceram em significado consoante se contabilizavam os séculos, e adquiriram com a linguagem proporções tão vastas que se me afigura de uma dificuldade avassaladora seleccionar tudo o que a palavra em mim precipita...

Definitivamente, traz-me imediatamente à memória a primeira vez que elevei o corpo acima do chão, embarcada num Air Bus trezentos-e-tal; foi nesse momento, entalada entre o cinto e o encosto, de nariz colado à janela, a ver Lisboa a sumir-se pela altitude crescente, que desenhei um esboço - uma espécie de definição tingida de borrões – dessa coisa tão plural em matéria de significado que era a viagem: talvez fosse o percurso efectuado, a partida, a chegada e o regresso, mesmo que jamais exista regresso, através do espaço imenso que é Tudo.
Nessa primeira viagem, vi a nossa cidade sumir-se numa mancha colorida pregadinha ao mar, banhada por bordas brancas; depois, com mais uns metros somados, era o mar que se deixava devorar por nuvens obesas e transbordantes de si próprias, permitindo ao céu revelar-se imenso no seu azul, infinitamente inalcançável; algumas horas depois, enquanto os ouvidos estalavam, contornos de um sítio novo desenhavam-se na janela do avião, ampliando o destino da minha viagem, que era, portanto, a transladação do corpo, dos olhos, de todas as minha sensações minúsculas para outro sítio algures no Universo, que se pressupõe infinito.

Mais tarde, acrescentei a todas estas impressões mal concebidas uma expressão que colocava ansiedade em função do espaço percorrido. Na verdade, não se trata de nenhum conceito matemático digno de louvar: traduz-se unicamente no facto de a ansiedade crescer conforme o trajecto termina e promete, curva após curva, o alcance do destino pelo viajante - a expectativa, o enveredar por novas paisagens e o invariável mergulho na torrente de diferentes texturas humanas.

Antes de tudo isto, já eu tinha descoberto que gostava da estrada a construir-se a si mesma à medida que o asfalto era esventrado em velocidade, de sentir o corpo a ser puxado pelos vectores que as curvas provocam e a gravidade impinge. E a nudez que se vai apagando no lugar da memória e colorindo de novas paisagens... Gosto ainda mais da sensação arrepiante que reconheço ao invocar essas mesmas memórias, e da forma como o organismo reage às recordações que se atropelam quando lembro a neve da Serra no Inverno, as pedras gordas de Monsanto, as bebidas quentes de Andorra e as suas pistas de esqui, o sol de Abril a pôr-se na marina de Ponta Delgada, o verde arrepiante dos campos de arroz acabados de germinar contrastando com a secura acastanhada dos Andes, os rios, os idiomas, os hectares de girassóis e as praças e as feições de quem as ocupa; tudo isto se mistura no meu humilde álbum, resumindo assim a confusão de lugares e gentes que se vão coleccionando.

Porque viajar é deixar os sentidos alerta, soltar as mãos e os pés, e também a língua, e permitir o encontro - logo nós, humanos, que passamos o tempo tão entretidos connosco e a nossa grande barriga, metidos nas nossas vidas, a admirar os nossos problemas, tão reais e importantes e catastróficos. Também é saudade.

A viagem é urgente. A resposta à necessidade de cumprir tal urgência vem, julgo, dessa outra necessidade (já por mim mencionada) de sobreviver na infinita loucura que é o mundo. É urgente sair de casa, produzir trabalho sem trabalho e degustar o encontro de culturas, provar a comida mais estranha, sobreviver a temperaturas mais quentes ou mais frias, respeitar hábitos estrangeiros – fazer um esforço de adaptação, relativizar, saborear quem todos os dias se senta ao nosso lado.
E construir momentos em que se vive de forma esdrúxula, longe de um cânone que nos é familiar e pouco traz de novo.

Metáfora da própria vida, complementa-a - partir e ficar: ficar antes e após partir num regresso eternamente adiado, como quem semeia um bocadinho de si em qualquer lugar, em qualquer tempo.

Em suma, talvez se traduza em algo tão simples como:
Ser cá. Ser lá. Ser de Todos.

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Para a edição 40 da Frontal

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