apneia e três pares de meias
Enche os pulmões de ar:
Está tudo trocado,
irremediavelmente virado do avesso. Recordava-me há pouco de uma certa
madrugada de agosto em que adormeci gelado e acordei submerso num imenso
aquário celeste, mergulhado nos prenúncios algo cáusticos de um outono fora de
horas. Não são raras as vezes em que me deixo ir passando de estação em
estação, sem rumo assente. Nessas vezes, regadas a confusão e discórdia
interior, troco os longos areais e os crepúsculos tardios pelas tardes de chuva
aflitiva. E tenho saudades das lareiras, dos cobertores e dos pés calçados com
três pares de meias.
Mas agora, que já me
devia estar a habituar ao cheiro caseiro das castanhas assadas, debatem-se as
memórias de longos dias de leitura à sombra dos pinheiros.
Tudo isto para dizer
que não sei do que sinto falta. Já vivi tantos outonos desta forma desesperada...
Porque tudo em mim é promessa, é urgência. Tenho uma sede que se resolve com
água a cântaros, porém... uma vez cá dentro, a água sabe-me salobra, e cuspo-a:
perco a sede mal o copo me toca nos lábios.
Devo estar a ficar
louco. Também o homem me assusta. Basta que me venham com ideias de compromisso
e eu... Não! Não! Não! Vão-se
embora daqui! Eu não quero nada de ninguém, não quero ser de ninguém, não quero
dar, não quero dar-me. Quero ter todas as noites reservadas para mim,
afundar-me no conforto da minha solidão.
E a realidade é esta:
eu não sou um solitário.
Aqui mesmo, na ponta do meu dedo indicador, está o terrível desígnio do resto da minha
vida; posso com ele passar suavemente sobre a lâmina curvada desta
foice, e sentir a pele abrir-se num rasgão de décimas de milímetro. Mancho
assim o pano branco onde a branca arma repousa, e agora o dobro, tapando-a e guardando-a porque, amigos, está tudo trocado,
irremediavelmente virado do avesso, e se eu desdobro o pano, acabam-se as lareiras, os cobertores e os três pares de meias - não os meus,
os teus, só os teus!
Afoguei-vos comigo.
Podes respirar.
Filho
da Mãe - Helena Aquática
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