inspeção
Poucas coisas me
faltam verdadeiramente.
Pedia outro par de
mãos, um cérebro com capacidade para resistir melhor ao sono, um nervo para a
pálpebra menos dado a descargas tão descontroladas quando quatro a seis horas
não chegam para os remates finais do meu descanso. De resto, parece-me perfeito
o alinhamento das lombadas que coleciono, tanto cá, como lá, o dançar da chama nas velas que
acendo ao fim do dia, parece-me perfeito o subir e descer das colinas
polvilhadas de prédios, de pessoas, de carros, de pombos, de indiferença, de
solidão. Até já ao anonimato me habituei, porém, não prescindo da quietude familiar de
outras ruas, da minha rua, do silêncio interrompido pela motorizada do
Silvestre Roque, pelos tratores que passam a pulverizar os pomares, dos cães
que ladram de tempos a tempos, sem ritmo, sem harmonia.
Poucas coisas me
faltam verdadeiramente.
E tempo?
O tempo está adequado,
não o quero entreter e com isso deixar-me ir em cantigas de letra que não sei interpretar - tampouco quero. O tempo está perfeitamente
adequado. Não preciso de mais tempo – este chega-me, não sobra, oxalá nunca me
sobre: nunca vi ninguém aproveitar os restos com a suficiência merecida. Afinal,
um resto é só um resto, que até podia
ser tudo, mas, que azar, não coube noutras dimensões. Tempo de sobra faz mal,
torna as pessoas doentes e deprimidas, aborrecidas, mesquinhas. É uma dimensão
com a qual se lida muito mal, esta, qual?, a do tempo, que, como um
tecido não cortado à conta, serve uma parte para uma bela blusa de seda, e o
infeliz restante para fazer panos e limpar vidros, para no fim ficar a tal
blusa perdida entre tantas outras no baú do sótão.
Poucas coisas me
faltam verdadeiramente.
Além de mais, vou tendo isto
vou tendo os postais de cidades que, para já, nunca vi, a somarem-se na minha parede, devidamente assinados por quem voa a outros sítios, vou tendo também os meus próprios postais, as moedas mexicanas, os porta-chaves espanhóis, os livros que o Cristo irmão deste me envia, os mergulhos nas águas geladas do Coura, as noites infinitas à porta da serra, e desta maneira ficando com os espaços vazios - espaços em volta, espaços por dentro – passo a passo menos em branco, que mais me estará realmente a faltar?
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