e a exploração de mim
(...)
A minha proposta: deitada a tua cabeça na minha almofada, fecha os olhos e
experimenta, uma noite que seja, ignorar o matraquear imparável dos relógios
que sobre o seu eixo giram, na assunção plena de que a minha pena tem de ser
cumprida. Cada hora a mais, sessenta minutos a menos. Esperei sempre que a
morte viesse de repente.
Eu. Esta consciência amarga que olha as folhas quedas de outono próprias,
descendo ao longo da soma dos seus últimos instantes; as folhas que se amontoam
e apodrecem, e são pisadas e esquecidas. Que não sabem até quando. Quem me dera
não saber até quando.
Eu. Nunca quis ter tempo. A cadeira que balança num ir e vir danado ao
compasso desequilibrado do meu corpo aqui sentado. Vem, senta-te no meu lugar e
balança na minha vez. Não podes. Eu sou a prova eventual de uma existência a
mim aparecida, uma possibilidade incompleta. O maior abismo da alma humana? O
confronto doentio com o fim da linha – observar de longe e compreender: o rei
que se achava senhor do mundo, não é mais do que dono de um condado-instante, a
partir daí, nada; a sílaba derradeira que anula tudo, que de tudo vem o fim,
consumindo o copo cheio, deixando-o vazio; e depois de feito, apagado.
Entretanto, reparemos nas horas de sol, na candura sobre-humana dos raios
que tornam todos os momentos excessivos, repletos e suficientes, de harmonia
vaga e inocente. Além disto, gritos, estridor e refugo - tão desnecessário. E
tu aí, de branco vestido, três meses dizes.
Em tempos, também eras munido dessa fraqueza de espírito (dão-lhe os doutos
este tom, como se fosse defeito a compaixão) que te fazia chorar a morte e
delirar com a doença, mas foste sempre sendo calejado pela força da
indiferença, tão necessária. Tu, não sendo eu, tinhas de sobreviver. E aqui
estás. Porém, permite-me: quando é que tudo isto deixou de ser humanidade e
passou a ser a destruição orgânica inevitável e imprescindível? O tormento
febril, o medo, nada te diz respeito? Reitero para que jamais te esqueças: o
peito destroçado pelo sufoco, o desespero abafado e contido pela certeza de que
não há engano mais possível de me salvar deste abalo final, o rasgão que
transforma a morte em coisa, paradoxalmente, viva e real, não acontece só ao
desgraçado que te olha tremendo.
Tive pelo menos tempo para dobrar as camisas e polir os sapatos, guardar a
certeza de uma ligação inextricável entre este e o outro lado, que parecia só
promessa e agora se cumpre. Está tudo pronto, mais uma mala feita e a minha
extinção foi.
Quantas vezes a dormência. Quantas vezes a ignorância.
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