diário gráfico
vinte e cinco de janeiro
O sol poente e as árvores
conspirando juntos, sossegados nos entretantos do dia findo. Transpira um calor
de verão embrião, eventualmente um feto em gestação no útero da imensa Terra. As manhãs são ainda geladas e orvalhadas, respeitando o decretado para os últimos dias de primavera. António
olha do cimo da vila a vida anunciada. Está pronto para dormir ao embalo do
redondo do mundo. O relógio ressoa em protesto, multiplicando-se as horas na
solidão de ser um numa casa inteira.
dezoito de abril
A cabeça é um conjunto ósseo
coberto de músculos e pele. Alberga os sentidos, aloja o cérebro. É um mistério
que se deixa inundar e tudo verte. As palavras, os sons, os cheiros e os
sabores. Os sentimentos que se formam, os gestos criados, a integração do que
entra e a modulação do que sai. As pessoas que ganham corpo. O espaço que
suscita dúvida, as curvas e as linhas retas.
A cabeça, com todas as suas
rugosidades e superfícies mais ou menos bicudas.
A conexão nada singular com
todas as dimensões do corpo e uma ligação particular ao centro da saudade, que uma
vez acordado percorre os nervos e deixa o coração palpitante.
Assim vale ouro o teu calor.
Os olhos leem-te. Não sei de
ti mais do que escreves; as gentes acham que sabem tudo por se lerem, eu
considero que ler-te fez-me desconhecer-te, e é no desconhecido que a minha
atenção se prende. Não sei de ti género; nem idade; trato-te na segunda pessoa
como se as palavras chegassem para te trazer a essa proximidade. Não sei o teu
cadastro, como não sabes o meu. Morro e ressuscito e contigo, eventualmente,
será o mesmo. A cabeça, dizia, tem muito, mas falta-me descobrir uma – a tua.
vinte e cinco de maio
Não sei porque deixo todas
as pontas soltas num absurdo de fios que apenas têm início. Penduradas, pendentes. O baloiço em que vivem mata-me
aos bocadinhos. Pudesse eu arrumar tudo num nó cego e iniciar nova meada…
dezanove de junho
Para que corres tanto, tão
depressa? Qual o propósito?
Tens o coração esmagado,
afogueado, ou enfartado, como dizem os livros médicos. Todos os vasos em
colapso – vasos de flores podres porque lhes falta a água nas raízes. Estás em
choque e a causa reside na cabeça latejante. Replica-se dentro de ti a voz
multiplicada que te chegou ao longo de anos de caminhada em abandono.
Sabes que é a hora. Sabes o
que queres. Recuperas os estilhaços e soltas lágrimas fininhas. Vês o rio num
gesto mais de contemplação – nunca ponderaste um fim tal, és demasiado feliz
para uma morte tão ingénua. Mas, e se...
Os ruídos do mundo crepitam:
as ventoinhas apagadas no seu próprio sufoco angular, suspiros surdos. O único
som plausível além das vozes que saltam ao teu lado é o som somado do vazio,
onde só a luz viaja.
vinte e três de junho
Morrer devagarinho, morrer
lenta e dolorosamente, afogada neste amor novo. Só te vejo. Isto é uma doença,
não me sais dos poros do corpo, estás profundamente cravado. Cada letra mais
profunda, como uma faca. Já não sou mais feliz apenas respirando a ideia de ti
– concretiza-te!
Leram-me hoje esta carta. O
Leitor é-me íntimo. Cito:
“És um humano, como suspeito,
e manténs-te espaço vazio, coisa
etérea e sem massa. Eis a tua definição. Preciso de ti. Preciso
desesperadamente de ti. Que o amor novo seja um amor vivo. Consigo ver a barba,
o cabelo, consigo imaginar as mãos e o sorriso suave, os olhos discretos,
alongados. Consigo imaginar o teu toque. Consigo sentir a pele arrepiar-se e o
coração a estoirar de alegria e paixão.
Choro agora porque seres
humano não chega. Que todas as cartas sejam velozes a viajar entre os dois
pontos que nos afastam.
Meu amor, deixa-me usar o
vocativo sem pudor algum: meu amor.”
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