viver sem ar

Não sei onde me perdi. Não sei onde perdi as palavras - eu: repleta de palavras em cada canto do meu corpo, no soalho da minha cabeça, na curva dos meus olhos. É que eu não uso - nunca usei - as palavras. Vivo nelas, sou delas. Isto não é amor, é dependência que se traduz numa estranha forma de sobrevivência. E eu não sei onde as perdi! Acho que me caíram do bolso da imaginação e agora é vergar os joelhos, colher os caquinhos e reinventar a forma. 

Entretanto, aconteceu tudo e eu não contei nada a ninguém. Andei ocupada a arrumar a tralha do quotidiano sem me dar conta que tinha os bolsos vazios e a alma em suspenso. Dadas as circunstâncias do mundo, talvez seja mesmo mais sensato meter a alma debaixo da cama (ou dentro do armário, ou pendurada no estendal, ...), ignorar o supremo deserto em nós e continuar resistindo em apneia, não vá o ar gastar-se na sofreguidão de viver.

Comecemos pelo princípio: eu escrevia estórias. Era parasitada pelas ciências naturais e contaminada pela filosofia, cultivada pela língua portuguesa, arruinada pela matemática. Mas sempre escrevia as minha estórias, contos de quem nunca contou nada a ninguém, porque estávamos em 2008 e a fronteira da infância para a adolescência confundia-se com uma maturidade assombrada pelo medo de morrer. Era duas ou três pessoas ao mesmo tempo e a infipolaridade radicou-se durante os tempos de Medicina - essa arte tão antiga quanto sôfrega de mim mesma. E assim passou 2010 e veio 2016 - num só fôlego.

Então, saí. Peguei no meu gato, nos meus livros, na minha vontade de crescer, e saí. E fui lentamente devorada pelo apelo laboral do cuidar do outro e pelo medo irresistível de falhar. Fiz terapia, desisti da terapia, veio a pandemia, e saí novamente... Desta vez, do hospital. E as palavras, entretanto, já andavam espalhadas por aí, perdidas e sem sentido, às vezes em francês, sobretudo em inglês, de repente em alemão. A confusão era tão grande e o Amor venceu. 

Aqui celebramos a vida, porque Deus nos criou para a alegria. (S. M. B. Andersen)

Em 2022, 30 anos de vida e muitas horas de sobressalto, um casamento e sempre esta revolta imensa, a angústia quase insensata, e a terapia de novo:

Nous avons une peur profonde comme l'abîme, de la hideur de notre inconscient personnelle. C'est pourquoi l'Européen préfère dire aux autres comment ils devraient agir. Nous ne pouvons pas concevoir que l'amélioration de l'ensemble commence chez l'individu, y compris chez moi-même. (C. G. Jung)

Passo a explicar: há demasiado ruído a borbulhar nos meandros desse meu inconsciente inflamado. Os anos passam e a coisa agrava. Talvez por isso seja tão mais difícil escrever em compasso o que transborda da minha ansiedade. A sabedoria da idade ainda não me diz nada, e o presente é um lugar difícil de aceitar.  Por isso, prometo a mim mesma que doravante serei beata devota deste lugar. E se não cumprir a promessa, não faz mal, eu me perdoarei.

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