choras a mágoa presente, reles

 

Já tinha gritado tudo. Já tinha anestesiado o ódio. Só faltava alguém.
O cabelo comprido caía-lhe a pregas soltas sobre as costas brancas. Abriu o roupeiro e tirou um vestido leve de Verão, com motivos florais. Calçou as suas antigas sabrinas e sentou-se em frente ao espelho.
Do outro lado espreitava alguém que não conhecia. O rosto ariano estava oculto pela cólera, e os olhos já se haviam comprimido até reduzir a fendas.
Puxou então as madeixas de cabelo e prendeu-as com um gancho, os poucos que escaparam foram deixados livres à bonomia da brisa. A bruma do horizonte refrescou o quarto com o suave perfume do mar. Verteu água-de-colónia sobre os pulsos e pó-de-arroz nas maçãs do rosto. Saiu altivamente.
Desceu as escadas e passou pela sala de abóbada alta, paredes caiadas de branco e cortinas de um bordou escaldante, acetinado.

-Eu tenho dito que ela não era mulher que se deitasse com o meu irmão.
-Oh, ninguém podia prever tal desenrolar. Olha que a tua cunhada sempre se apresentou boa esposa.

Por meio de sussurros e abanos, as mulheres ali se prostravam conversando sobre a vida alheia, fazendo testemunhos precisos sobre verdades desconhecidas. Aqui e ali havia copos de bebidas frescas pousados, uns cheios, outros meios, alguns vazios.
Passou pela mesa de centro e roubou uma bebida gelada, deixou um beijo na mãe e saiu sem mais satisfações.

-Volto logo.

No jardim brincavam as crianças a quem pouco interessavam as alcoviteirices das velhas carcaças. Tinham as mãos cheias de bolos e bigodes de chantilly. Brindavam à nova vida, ausente de passado e cheia de futuro. Ah! Como ela as invejava…
Corria. As pernas não davam para cair na melomania dos passos lentos. Corria. Sair da ilusão de que a calma é morte. Corria.
Nesse dia, o vento tinha um hálito quente de brisa abafada. Do sol choviam os raios das três.
Por fim, chegou. O objecto do seu desejo tinha rugas de anos de vida que já passavam em muito a marca do espaço e do tempo. Sentou-se ao seu lado e chorou a mágoa presente. O vestido balouçava com a calmaria brava, e o cabelo apanhado soltava-se desvairado.

Às vezes, acontecia. Podre de raiva com ódio ressentido, ela ali chegava e esculpia cada dor até mais não poder. Por fim, sorria com a candura dos olhos alagados de lágrimas e voltava ao doce leito.
Era estranho, e era assim.

Fotografia por Cyril Berthault Jacquier.

Comentários

Anónimo disse…
O teu texto fez-me vir até à memória os momentos em que corria até ti para chorar a minha mágoa presente que não conseguia "eliminar" no leito materno, isso será sempre impossivel!
Mas no teu colo nunca! Aproveito para deixar aqui o meu obrigada!
beijo*
Anónimo disse…
o texto faz lembrar muitas mágoas.
está muito bom.
sim o suj. referia-se a Pessoa.
fi-lo no dia do seu aniversário. mas só agora tive "coragem" de para o publicar
Anónimo disse…
és a ana luísa a irmã do carlos?
bjo*
Meckib disse…
estava a ler mais uma vez o Delirium e fui parar aos comments.
acabei por ver uma conversa entre ele e a Stracciatella e entre a mesma e tu.
who would guess?

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