à maria, que mora no 67 da minha rua #2

2008.
A 28 do mês Julho.
A Ti
Querida Maria,
A ti...
Desta vez não te relato sismos nem catástrofes maiores, apenas mais um dia. Fulcral.
Da janela aberta de par em par, assisti ao espectáculo mundano de fraldas por mudar. A noite tinha o semblante carregado de estrelas, fazia calor. Eu arrumava toda a tralha que tinha juntado nas gavetas, estas gavetas que tu tão bem conheces, mas que eu insisto em manter em anarquia absoluta (é só um escape, eu prometo que as arrumo). A rua imprimia imagens que me chamavam. Esforcei-me por manter a concentração focada nas minhas tarefas de gente normal, resistindo a uma série de impulsos impelidos pela curiosidade.
Debalde.
Não imaginas como me foi roubada a atenção e deixada a vista desarmada.
Bem conheces a esquina da nossa rua. Tem postes de ambos os lados. De noite, a luz esquálida torna aquele lugar ainda mais pestilento. Ai! Como eu odeio viver aqui…
Então, eles chegaram. Vinham em bandos de três, mas não vinham todos ao mesmo tempo. Desconfio que devia ser dos poucos sítios iluminados por estas bandas, àquela hora. Faziam uma roda e do meio saía fumo… A metamorfose. Havia gargalhadas soltas, mentes insensatas, olhos vermelhos.
Demorei a perceber o que se passava, e a verdade chegou louca, embrulhada em confusão. De um só trago, engoli a bola de atordoamento que se havia formado na minha boca. Estava entalada, e tive de a empurrar com uma fuga perspicaz.
Quando voltei, o filme em cena era outro: Os mendigos retraçavam lá fora a porcaria imunda que deixámos hoje nos caixotes do lixo. Invejei-os.
Juntei-me a eles; que o lixo de outros seja a minha novidade. Já não suporto mais coisas novas, nem gramas de tralhas que me impõem em vão.
(Tretas condicionadas.)
(Verdades apagadas.)
-Mas os inconvenientes agradam-me.
-(…) Nós preferimos fazer as coisas com todo o conforto.
-Mas eu não quero o conforto. Quero deus, quero a poesia, quero o autêntico perigo, quero a liberdade, quero a bondade, quero o pecado.
-Em suma, você reclama o direito de ser infeliz.
-Pois bem, seja assim! – respondeu o Selvagem em tom de desafio – Reclamo o direito de ser infeliz.
-Sem falar no direito de envelhecer, de ficar feio e impotente, no direito de ter a sífilis e o cancro, no direito de não ter de comer, no direito de ter piolhos, no direito de viver no temor constante do que poderá acontecer amanhã (…)
-Reclamo-os a todos – disse, por fim, o Selvagem.
(Admirável Mundo Novo)
(A todos!!)
Vamos Maria, chama-me “Selvagem”, mas eu quero o direito de viver toda a plenitude destra desgraça humana, sem mentiras nem vendas nos olhos.

Comentários

Anónimo disse…
Reclamo o direito de ser infeliz.
It's always things, things, things!
Tão, tão bom :)
(eheh)
Meckib disse…
concordo.
todos temos esse direito.
mais um bom texto.
Olhos Verdes disse…
sabes que eu sei que escreves bem, com sentimento. espero que talvez me reconheças. fica bem. beijinho

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