esta velha era feia e repugnante

"Coçou a verruga. Aquela maldita comichava a noite toda, mordia a pele com dentadas lambuzadas, que os dedos da velha não resistiam a esfregar. E esfregava, esfregava. Voltou-se na cama. Fungou. Abriu um olho e compôs a almofada. Tornou a adormecer. Não tarda, voltou a comichão, voltou a esfregar, voltou a voltar-se, a fungar, voltou a abrir o olho e a compor a almofada. Acordou enfim. Levantou-se e viu-se ao espelho; a verruga estava inflamada, como uma borbulha de cabeça branca e invólucro encarnado, o que aumentava consideravelmente o tamanho do seu queixo. Tinha de travar a evolução da queratina, que ali não fazia falta nenhuma, abriu a gaveta da mesinha de cabeceira e procurou a bisnaga que continha o abençoado ácido salicílico, e esfregou, esfregou. Lá acalmou o formigueiro com uma espessa camada de pomada, que deixou o queixo ainda mais oleoso que o habitual.
Sentiu sede, aproveitou a deixa e vestiu a bata pingada de gordura por cima do pijama. Já estava a sair do quarto quando se lembrou do maço de notas; foi a correr procurá-lo no bolso da saia de caqui, mas não estava. Ah! Sono matreiro, obviamente que não estava lá, jamais ela dormiria com o seu tesouro tão longe dela, e foi então que, sorrindo serenamente, enfiou a mão debaixo da almofada e tirou o seu molhinho para dentro do bolso do pijama. Sempre perto dela, sempre, como um filho.
Sentou-se à mesa da cozinha e bebeu o seu copo de água. Estava mesmo satisfeita, no dia seguinte ia receber o dinheiro das rendas dos inquilinos. Era dia vinte e cinco. Não era niilista, nem cristã, nem tinha qualquer outra fé, a sua religião rezava apenas ao vinte e cinco. A sua vida era uma rotunda viagem banhada na esperança de alcançar o vigésimo quinto dia do mês. Sim, isto podia soar a niilismo, mas ela tinha realmente uma finalidade para a sua existência, apesar de raramente pensar nela, era engordar o seu maço de notas. Não acreditava na vida depois da morte, mas no dinheiro para a vida. Não imaginava sequer o vazio, mas sim o preenchimento de mais e mais."

(...)

É que isto é apenas uma parte.

Comentários

Anónimo disse…
Admiro te.
escreves lindamente e coisas absutamente lindas
:)

tenho saudades tuas beijo

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