coisas de gente
O dúbio mascarado, o
mentiroso
Afinal, que passou na vida
incógnito;
O Rei-lua postiço, o falso
atónito;
Bem no fundo o covarde
rigoroso....
.
Em vez de Pajem bobo presunçoso...
Sua alma de neve asco de um
vómito...
Seu ânimo cantado como
indómito
Um lacaio invertido e
pressuroso...
(...)
Aqueloutro,
Mário
de Sá-Carneiro, Fevereiro de 1916
..
.
-Que
raio de aspecto o teu. Que aparência!
-O
que tem o meu aspecto de errado?
-Já
te miraste bem?
Claro
que sim! Quem nunca se olhou num espelho, nem que por mero gesto de vaidade,
por tenaz futilidade?
-Não
é assim que te consegues observar. A ideia é rasgares o teu corpo, abrindo bem
os olhos, muito bem, e percorreres cada canto como se nunca te tivesses olhado
antes. E agora?
Tudo
igual, ora aí está! A única coisa que lhe parecia bizarra era a mobília de faia
escurecida pelo tempo, picada pelos bichos: feia e bolorenta, muito antiga,
atrevida a espreitar pelo vidro espelhado. Mas o seu corpo parecia
normalíssimo; viu-se de lado, de frente e de trás.
-Comecemos
pelo cabelo, tão direito, penteado e certo. Vamos, dá-lhe uma tesourada nessa
ponta. Não dás tu, dou eu.
E,
pegando na tesoura pousada mesmo na mesa ao lado, abriu bem as charneiras,
fazendo-as sibilar entre as madeixas pretas. A outra nem se mexia, de olhar
pregado à imagem reflectida, impávida.
-Agora,
segura neste pano húmido e limpa essa maquilhagem toda, lava-te! Quero ver a
cicatriz que tens no queixo mais a outra por cima da sobrancelha. Quero ver as
manchas das borbulhas e as olheiras e as rugas que te lavram a cara.
Mecanicamente,
lá foi esfregando o rosto, deixando emergir as cicatrizes, as borbulhas, as
olheiras, as rugas. Surgiram assim as marcas inefáveis do tempo.
-Só
falta a roupa, esse último vestígio de civilização que urge ser banido da tua
companhia: rasga-a, arranca-a, despe-a.
Rasgou-a,
arrancou-a, despiu-a.
Por
uma nesga da porta de carvalho entrou uma aragem fresca tão típica da brisa de
Abril. Cada pêlo do seu corpo nu eriçou-se em protesto, cismando pela roupa que
lhe haviam extorquido, contorcendo-se entre arrepios brutais.
-Olha
só como estás bonita.
Mas
ela não se achou assim bonita. Aliás, encrespava-se de medo da figura horrenda
que a fitava. Horrenda, medonha e contraída. Aquela era ela desprovida de
qualquer máscara delicada e urbana, enfim: civilizada. Vendo no rosto disforme
da encolhida figura feminina o horror tão bem desenhado, a primeira pousou
maternalmente a mão sobre o ombro da outra, como se já esperasse esta reacção.
Aproximou a boca do seu ouvido e explicou:
-
Não esperavas um milagre, pois não? Já agora, aproveita e espreita os outros
também.
Quando
passou a vista através da janela não viu ninguém vestido, maquilhado, bem
arranjado. Até as casas caíam sob pesadas ruínas e os demais pedregulhos
revolviam as ruas pavimentadas a calçada. Eram as chagas todas bem à vista, os
corpos a dançarem cheios de pompa e ostentação, bamboleando-se ridiculamente.
No entanto, havia um par de olhos que os observava sem o mínimo vestígio de
artifício, tal como eram:
-Bem
feios, suspirou.
-Oh,
são só coisas de gente.
.(Ou eu sou demasiado
exigente, ou as pessoas não valem mesmo nada)
Comentários