curiosamente


Curiosamente, o sol agora já não é amarelo, como o sabemos, com uns certos raios de tons mais azulados – que é como quem diz, mais quentes -, uma esfera quase uniforme de gás que, febrilmente, se compõe e decompõe. Não, já não é nada disso – é um casulo de tiras amareladas e quentes misturadas com outras cinzentas e com vestígios de oxidação (quiçá redução): uma pilha de barras que, entre si, geram um campo de forças cuja única função não é mais do que manter prisioneiros os pobres lavradores dos campos do fundo da montanha.
Baixa ralé, morgadinhas solteiras, rapazes casadoiros e crianças ranhosas com velhos raquíticos. Trabalham de sol a sol, numa poeirada que não lembra nem o trabalho da mais insignificante formiga – se é que às formigas, em dignidade, podem ser comparados. Sujeitos à irredutível, impreterível e inviolável lei da hierarquia, sublimam às recuas por essas terras fora, enchendo os pés de lama e as bochechas de olheiras bronzeadas. O mundo deles é isento de fórmulas, números, conceitos ou paradigmas, mede-se em pés e arrobas, conta-se a feijões e a sacos de batatas, ou a mãos de sal e nacos de toucinho seboso. O mundo deles não é, de certo, deles: tem outros donos, outras regras, novas ideologias que ninguém consegue explicar – são razões desprovidas de razões – rege-se sem porquês e constrói-se silenciosamente, porque qualquer pio da populaça é inaudível e, se assim não fosse, a irritância que causaria transtornaria as mentes saudáveis que, gulosamente, engolem o fruto do trabalho que não é seu. Que suas só são as panças cheias.
Curiosamente...

O sol aprisiona.
Sem sol não haveria desculpa para tanta desumanidade. Mas também não haveria desculpa para a vida, e agora?
Curioso.

Comentários

pb disse…
"O mundo deles não é, de certo, deles: tem outros donos, outras regras, novas ideologias que ninguém consegue explicar – são razões desprovidas de razões – rege-se sem porquês e constrói-se silenciosamente, porque qualquer pio da populaça é inaudível e, se assim não fosse, a irritância que causaria transtornaria as mentes saudáveis que, gulosamente, engolem o fruto do trabalho que não é seu. Que suas só são as panças cheias."

Não sei porquê (mentira), consigo identificar várias situações decorridas recentemente com este brilhante excerto. És a mestra da metáfora. :)

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