navegante


Às vezes é tão vago o momento e tão ligeira a leitura, e as palavras e os gestos inscrevem-se profundamente no corropio tenebroso das ideias. Persiste a sua força numa insistência brutal, o que é ver?
Também os marinheiros sabem pouco da ciência do seu mastro, e a única vidência plena é a de que ir ao fundo não é somente questão de falta de estratégia, que até os mais sábios piratas podem perder a luta contra as velas gritantes e onduladas, que o vento, amante sabido da natureza, se imiscui no pano branco, trai e assim... subtrai.

[Quando a tempestade chega.]

Da proa à popa, qualquer que seja o pedaço de madeira salgada que pise, o marinheiro invariavelmente se debruça sobre o latido da água revolta, que banha a terra e  lhe molda a costa. Chapadas de mar declinam sobre a areia, ignorantes da transição dos dias...
Mas é dessa transição que preciso: mais nenhuma memória me é possível recuperar, a não ser a da queda das folhas para que a chuva venha, e lhe sigam as flores em seu regresso primaveril e os frutos - novamente as folhas caem, as ondas vão e vêm e eu balanço flutuando sobre este denso continente... Mais nenhuma memória torna segura a tão ténue certeza de que o tempo seja, afinal, o único lugar de constância no cerne do caos.

            Quando a tempestade chega, a madeira estala e quebra e os homens gritam de aflição. Ordens e preces revoltam-se na boca e nos ouvidos, o coração pulsa descontroladamente, o medo e a angústia entalam-se entre golfadas de ar e litros de água – pela boca, pelo nariz. Três ou quatro vomitam desconsoladamente o pouco-nada que lhes havia caído ao estômago, nauseados com a pouca sorte, embalados pela saudade que antecipam.

Não sei o que fazer com tamanha vontade de viver. Não posso saber. 
Tempestade a tempestade: não, nada aqui é calmo e verde e sedento de paz; pelo contrário, contam-se pelos dedos os dias passados na companhia de uma calorosa brisa serpenteando pelos cabelos - há morte e destruição e o contrato com o estaleiro é de ordem vitalícia.

***

 Snowstorm

  The Burning of the Houses of Parliament

William Turner

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