um dia três insectos

Saia comprida e preta cingindo-lhe a finura das pernas, o tronco quebrado pela força ausente, os olhos virados para cima, enquanto o queixo e o nariz apontam, de longe, as tábuas, as pedras, as ervas rasteiras ou até as um pouco mais altas, farejando caminhos e empecilhos.

A bengala da velha tremia como tremente estava a mão do mesmo lado, e o braço, mas à esquerda fixava firme contra o peito um pote de vidro fusco, mal lavado, com pregas de calcário colando-se-lhe às paredes.

Era um pote de memórias e dava morada a três insectos.

Debruçava-se no granito do umbral da janela – micas e feldspatos sugando-lhe o pouco calor do corpo – e tardes passavam sôfregas enquanto, em jeito de ritual, picava folhinhas de alface para consolo da fome dos bichos.

Um dia, dormia a velha reclinada na sua poltrona florida - bengala pousada no chão, uma perna mais esticada que a outra e os óculos inclinados sobre o nariz torcido - quando o vento soprou forte, atravessou a fresta da janela, e derrubou os gordos animais. Estes, até então vegetarianos por falta de outras opções, obrigados a deglutir verde sobre verde, olharam a pobre velha, E porque não um bife e algum osso?, e comeram o que comido pelos anos, a oxidação natural das células e a degradação permanente, havia já sido; devoraram-na ao ritmo da sucessão lenta de pequenas dentadas.

Havia sido... pretérito mais que perfeito composto do - esta é de rir - indicativo! Que adequado, se indica que nunca mais será indicado, porque indicado foi que já passou, agora mais do que passado nunca mais passará...

Restou a saia comprida e preta, depois de um manjar tocado a notas de poesia, da conversão silenciosa do presente a particípio e do músculo a péptido, e os insectos, inchados e hediondos, jamais couberam no pote.

Escusado será dizer que só a carne não mata a fome

que insectos não plantam alfaces.