vê se ainda dorme
(...)
A segunda velha ergue-se do seu trono de napa roufenha e vai, muito coxa e torta, em direcção à mesa de centro da sala; arreda
o napperon de croché; enfia a mão cruzada por mil anéis de de pechisbeque por
baixo da malha e de lá tira uma chave ferrugenta; atravessa a divisão
iluminada por um tímido sol de final de tarde - cabeça a um lado, agora a outro
– e abre a gaveta do aparador, fazendo vibrar os copos de cristal e os pratos
de porcelana; puxa da caixa dos cigarros: uns cigarros finos e bafientos, delicados
demais para o seu negro propósito.
.
.
-Toma um.
Acendem cada uma um cigarro, admirando a
combustão do fósforo e depois a combustão do tabaco, cuspindo uma névoa pálida
da ponta do seu canudo amarelado para engolirem a espessa bola de fumo,
mastigando avidamente o colóide nicotínico... Lá dentro – mais dentro que se possa imaginar – dá-se a
catarse nervosa, cada célula – da mais nova à mais velha - se enche de cargas e
potenciais, treme e grita e grunhe, empurrando as sua vizinhas e a elas transmitindo
o seu abalo [quase, quase] libidinoso. As velhas deixam descair as pálpebras,
saboreiam silenciosamente o seu tabaco ardido, estendidas nas poltronas pirosas
da sala... Nos pulmões, a história é outra: cola-se alcatrão (e outras merdas
que tais) às suas paredes frágeis, mas quem quer saber isso quando a vida
adquire novas cores e o corpo morre serenamente sob a vergastada de não mais do que um momento de prazer?
A primeira pousa a camisola que tricotava;
levanta-se rangendo nas suas próprias articulações e engrenagens e vai ver se o
velho que seu marido é há mais de cinquenta anos ainda ressona no quarto ao lado, ironicamente
embebedado pela letargia dos dias moles da velhice – ironicamente porque,
note-se, é a única personagem desta história que não bebe mais do que um sono
enfim consumado. Fecha a porta com cuidado e abre as
janelas – nuvens só as da rua, não precisa despertar os ódios paternalistas do seu
velho.
Regressa para junto da amiga, trazendo na
mão uma outra, mais novinha, límpida, airosa, alcoólica – cem por cento
alcoólica, toda ela alcoólica, a expressão quase absoluta do álcool, pelo
menos, para elas.
- És servida?
- Não sei dizer não...
E assim partilham, meneando a língua entre
estalinhos de satisfação e sentenças sem nexo, uma garrafa de vodka pura,
escondida de sábado a sábado sob as almofadas do sofá, ébrias lúcidas pela
clareza da sua majestade física: esquecem-se da artrite reumatóide, das perdas
de urina, das hérnias, das cataratas e das úlceras varicosas.
São mulheres outra vez, apesar de bebidas
pela inocência de um cálice.
***
Comentários
2º ponto: Vais tirando tópicos assim que imaginas, e depois escreves porque eu gostava muito de ler a tua interpretação. Mas estas imagens adjudicadas de palavras que saem do teclado são provavelmente como os filmes do Lynch, 100 espectadores, 99 teorias diferentes :) mas: escreveeeee