a baross tér a keleti pályaudvarral

Budapeste foi, nos últimos tempos, o ponto de partida para todas as chegadas resumidas numa história que tem “Keleti” como cenário principal. Assim se fez esta cidade o lugar dos caminhos que depois se fizeram em mim, com pouco e com tanto, com as suas boulevards grandes ou um bocadinho mais pequenas, praças e igrejas e jardins, mais as ilhas que irrompem do Danúbio. Insolvente, deixou-me umas quantas dívidas por tratar – e ainda me deve tanto! Que agora vai ser só memória o que me resta das luzes maravilhosas que descem do Parlamento e sobem ao Castelo de Buda, atravessando as pontes – uma a uma – e tocando a Citadella. A Citadella vai ser só memória! A colina que se investe no céu e os barcos cruzando o rio? O sol feliz e as nuvens tão inconstantes? Tudo uma memória!
Mas há mais a reter: há os cérebros todos que vi, cada artéria, osso, nervo. O vinho doce que, cheio de graça, celebrou mais uma vitória académica. E uma paixão nascente pelo tratamento das doenças da medula espinhal, essa coisa tão sem graça que, afinal, alimenta de movimento cada músculo do corpo e o atraiçoa com a dor que nenhuma morfina consegue apagar. Há a gentileza para comigo, em cada dia destes dias todos (triste é admitir que me comove o respeito como nunca vi lá de onde venho).
Há um minuto de silêncio que logo se enche do ruído das portas do metro quando fecham. Aquela linha 1 insuportavelmente barulhenta, os rostos tão feios pelas oito da manhã (e pelas nove e pelo dia fora) e o café péssimo que se bebe em qualquer lado que não seja Portugal. Os pés destruídos em todos os sítios possíveis, que com o tempo e os quilómetros já calejaram. Há a recordação embaciada (como se levando com um bafo húngaro) da língua mais terrível do mundo. Aquela angústia sorrateira de estar longe de casa minada pelas luzes tão horríveis dos igualmente péssimos cartazes publicitários. 

Mas não pensem que foi só isto, porque Budapeste foi também Praga e Viena, pela possibilidade de ir. E Moscovo e Amesterdão, pela capacidade de trazer.
Foi motivo para ver Arte que não veria de outra maneira, em cada palácio e em cada museu, em cada rua de cada cidade que visitei. Cumprimentar Klimt, Arcimboldo, Monet e Manet, Gauguin, van Gogh, Caravaggio e Rafael, Bruegel (o Novo e o Velho), e este e este e aquele.
Chorar na Casa do Kafka, onde senti o mesmo nó apertado na garganta que no fim de ler Carta ao Pai de uma golfada só. Benzer-me em frente ao túmulo de Tycho Brahe, numa reverência profunda pelo homem que deu nome às luas.
Viajar em comboios apinhados de gente estranha, sem assento reservado, com a mochila às costas e a magia a acontecer diante dos meus olhos, naqueles cinquenta centímetros quadrados de chão destinados aos meus pés.

E todos os acasos felizes que mudaram definitivamente o rumo da minha vida – ir sozinha, chegar perdida, não saber onde estou, encontrar-me. Encontrar.


a barross tér a keleti pályaudvarral,1900 körül


Enfim, tudo isto foi Budapeste, de onde agora me voy 
(a la mierda, quem sabe).

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