o que aconteceu?
Permita-me que
vos fale de um sonho que costumava ser recorrente na minha infância - não tão
distante de mim como pode o leitor julgar. Nas costas da minha casa, uma
clareira íngreme descia para terminar num vale envolto em árvores de fruto e
coníferas. Entre maceeiras e laranjeiras, pinheiros e roseiras silvestres,
outra clareira trepava para formar a vertente norte do vale. Costumava
sentar-me num banquinho de madeira, tardes inteiras, a imaginar que seres
misteriosos viveriam no topo das árvores ou entre as folhas do medronho. Que
esconderiam os grãos de terra? E que bichos habitariam o riacho que cruzava o
vale? E eu por ali ficava, na esperança de descobrir algo que me saciasse a
curiosidade e a vontade de me embrenhar nos mistérios daquela clareira. Então
vinha o sonho - sempre o mesmo, reprodutível de forma exaustiva: à noite,
enquanto dormia, era livre e audaz o suficiente para ultrapassar a desvantagem
dos oito anos e me lançar à aventura. Voava, corria, dava a volta a todas as
barreiras, trepava aos troncos mais altos para me orientar pela luz do sol e
manter na mira o outro lado do vale.
Mas não
conseguia. Nunca consegui. Todas as noites, o mesmo sonho inconsequente, a
mesma angústia e a mesma sede, e quanto mais sabia daquele lugar tão pequenino
e próximo, mais longe estava do norte, porque mais me interessavam os detalhes
do vale. Comecei a perder-me na composição química, na anatomia do pormenor, na
fisiologia da cor. Questionava a luz, o som e cada textura ou aroma. Calculava
distâncias e não concluía nada de relevante.
Assim se
passaram anos até perceber que tal sonho nunca se cumpriria, a não ser na
complexidade da irresolução. Para sempre sem resultado - e eu jamais chegaria à
clareira norte.
Hoje, sei:
atrás da minha casa, o que havia era um horizonte profundo e infinito de
possibilidades, moldado pelo contorno dos objetos que, a contra-luz, se
colocavam ao topo da outra colina. Um apelo à exploração que não pode
ter fim.
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Muitas vezes
nos questionamos: o que aconteceu à Ciência em Portugal?
Onde estão os
nossos Nobel, os nossos Pfizer ou os nossos Wolf? Onde estão os nossos prémios
e galardões?
Será que nunca
chegamos a lado nenhum? Será que Lisboa, Sagres e todos os outros portos
nacionais são apenas partida para conquistas marítimas?
Eis a minha resposta: na corrida pelo conhecimento, há lugares ao alto que não servem para todos e a que nem todos chegam. Reservam-se a uma elite que não será mais do que a ponta do icebergue. Muitas vezes, caríssimo leitor, é nas profundezas de um vale sonhado que a exploração começa - para nunca acabar. Haja vontade e uma dose de loucura. Haja comunicação e circulação livre de informação, crítica e ceticismo na mesma medida, e editores que façam da obra estudada palavra fundamentada. Uma revista online ou escrita, um apreço voluntário (ou nem tanto) pela partilha de conhecimento e um aprumo inestimáveis fazem as ferramentas ideias para despertar naquela que é uma das gerações mais bem preparadas de sempre o entusiasmo pela descoberta. É que um “não” nunca será suficente, como não serão suficentes três, quatro ou até mesmo uma dezena deles. Nós queremos e nós fazemos, desde a clareira de cá, à clareira de lá.
Porque Portugal
é pequeno demais – e a História tem-no provado: nem o mar travou esta sede de
levar a terra lusa a terra estranhas.
As conjunturas
não podem fazer conjeturas. Está na hora de apagar barreiras e fronteiras,
olhar a globalização com uma atitude de esperança no futuro, e não adivinhando
desgraças eminentes. Colocar o pé noutra terra, não significa que abandonemos a
nossa. É uma valorizar de ideias e atitude completamente novo e positivo.
O que aconteceu
à Ciência em Portugal?
Muito simples: cresceu a um ritmo mais
humano do que material. Somos maiores do que a nossa terra limitada a este e
norte por Espanha, ou a oeste-sul pelo Atlântico. O que podemos fazer aqui é
limitado apenas pela nossa lusa crença de que pertecemos aqui. O lugar
onde nascemos é só isso: o lugar onde nascemos. Define-nos na medida da
identidade, mas não nos confere a essência toda.