regressar

Nem sei por que razão parti deste lugar, faz já dois anos. Provavelmente, na altura fez sentido. Estava na Polónia quando aqui publiquei pela última vez. Regressei a Lisboa entretanto e, semanas depois, já andava pela Escócia, a cultivar C. elegans em caixas de Petri, a testar mutações provocadas por radiação ultra-violeta e padrões de reprodução com e sem expressão genética de xnp-1. Claro que esse verão de 2015 não se resumiu ao trabalho no laboratório da Universidade de St. Andrews: foi aí que mergulhei no Guerra e Paz, enquanto partilhava o meu quarto com estranhos a cada dia porque, enfim, viver num hostel durante dois meses é isso mesmo, e viajei mais de comboio e vi mais lagos do que podia acreditar existir.
Aquela neblina permanente, o frio que se entranha nas intermitência do corpo, as montanhas tenebrosas e a costa Este banhada pelo mar do Norte, que é absolutamente inacreditável na sua perfeição de castelos em derrocada. Toda a aura medieval, de um tempo perdido e difícil de recuperar, que vai tão longe como Isle of Skye - em que o gaélico é ainda língua viva, naquela solidão desoladora do Storr.
O verde imenso, infinito, impenetrável, maculado pelas flores de várias cores e as abelhas em Perth, Aberdeen e, claro, Aberfeldy. Glencoe, Loch Ness e Loch Tay, o castelo de Edinburgh e o jardim botânico de St Andrews, mais os seus pubs inconsoláveis, com a cerveja artesanal mais saborosa que já provei.
E tanto mais que, dois anos de ir e voltar, me levam a concluir que em algumas linhas aqui expostas nunca contaria a estória toda desta aventura.
Em setembro estava de regresso aos hospital de Lisboa, prestes a terminar o meu percurso enquanto estudante de Medicina, que em Portugal significa um exame de acesso à especialidade que eu sempre duvidei que faria. Só não sabia que alternativas me restavam; afinal, queria ser médica, mesmo não sabendo exatamente de quê. No meio de todas as possibilidades, tinha (e tenho) um trabalho em part-time que me permitia ir um bocadinho mais longe, mesmo que relativamente empenhada em estudar para o desolador Harrison. Assim, em abril de 2016 escapei-me para Aarhus, na Dinamarca. Já lá iam seis ou sete meses de estudo intenso, uma fuga até Paris e outra à costa da Liguria, e uma desolação imensa por saber que o meu caminho não devia ser aquele... Um mês numa unidade de Psico-oncologia, a trabalhar num projeto de investigação que me fascinava, assim como o contacto com estudantes que não viviam presos "ao que é suposto" mas sim envolvidos no "o que eu quero é isto", e os meus princípios de medicina interna já estavam arrumados a um canto. Sabia que alguma ideia me surgiria, e que seria genial e teria sucesso. Bastava inspirar-me: estava na Dinamarca, podia escapar-me de bicicleta para o Mindeparken ou para banhos no Báltico às sete, oito da noite, fogueiras e marshmallows até de manhã, ver o Festival da Eurovisão na cozinha repleta de gente diferente, sem me preocupar com o dia seguinte, e ainda desfrutar do Campeonato Europeu de Futebol a que assistíamos no Irish Pub, sem esquecer, claro, o meu encontro com Sigur Rós, Iggy Pop e Beach House no Northside. Quatro horas me separavam de Copenhaga - quatro horas e muitas pontes. Então, a meio do meu segundo estágio, desta vez em Hematologia, ofereceram-me a oportunidade de ir ao Congresso da Sociedade Europeia de Hematologia - e aí soube, finalmente, o que e como fazer.

Voltei a Portugal uma última vez, festejei o meu aniversário e comecei a estudar francês na semana seguinte. Em escassos dias soube que tinha uma entrevista em Lausanne algures em setembro e o meu plano para esse verão arrebatador de 2016 estava finalmente traçado: Marguerite Duras, Flaubert, muitos filmes franceses, podcasts da RFI e, claro, as aulas três vezes por semana, ao fim do dia, depois de aproveitar a praia e os livros e o calor. De Lausanne a Delémont foi um pulinho, mas pelo caminho ainda editei umas revistas e dei umas aulas de Neuroanatomia na faculdade onde estudei. Não sei muito bem como, mas em novembro era médecin assistante en Pédiatrie à l´Hôpital du Jura.

Passaram seis meses desde que sou médica e trabalho como médica. Um ritmo que desconhecia: ninguém nos ensinou, na faculdade, o valor incomensurável de uma decisão além, claro, da decisão clínica. Aqui, a decisão a que me refiro não é só essa, como também optar entre descansar e aproveitar o tempo para ler "só mais um bocadinho sobre aquela doença", ir a este ou aquele congresso, viajar, perder-me de amores e dissabores.
Para já, esta viagem termina em Delémont, uma vila minúscula do cantão do Jura, onde o branco do Inverno se transforma num verde alface lá para os lados de abril. Não há lagos, mas há as Franches Montagnes e outras belezas, como Pierre, o gato scottish-fold laranja que é o meu companheiro de todas as horas, desde agosto, quando era minúsculo, ao dia em que escrevo este relato; coço-lhe a barriga e ganho o direito de abraçar durante toda a noite, dormindo num aconchego difícil de descrever.
Aqui, em Delémont, a vida é portanto o paradoxo entre o sossego e uma quietude que já me fizeram fechar os olhos de prazer muitas vezes, ou partir à procura de ação tantas outras.

Regressei, portanto, embora nunca ao mesmo sítio.


Comentários

Anónimo disse…
Sabe-me bem ler-te novamente. Porque tu pensas como eu, e, como eu, sentes mais, precisas de mais.
Mais do que meros livros de doutrinas lógicas.
Mais do que uma profissão que te resuma, quando esta é incapaz de abranger cada singularidade do que aspiras ser.

Sabe-me bem ler-te porque tu hás-de ser sempre a pessoa em que me revejo e com a qual me identifico numa multidão de figuras singulares.

Por certo a razão pela qual me sabe bem ler-te é porque ao fazê-lo alimento a inocência pueril de que ainda somos as rapariguitas de quinze anos sentadas numa sala de paredes brancas e semblantes críticos: olhar atrevido e arrogância de quem acha que quer pensar mais, saber mais, olhar mais para sentir tudo num mundo de fugazes nadas.

Vejo-te por aí. E se isso teimar em não acontecer, pelo menos tenho o conforto de te ler por aqui, mantendo tranquilidade que mais alguém ainda vê toupeiras onde outros vêem a iluminação.

(A nova roupagem fica-lhe bem.)

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