Quando, finalmente, pôde descalçar os sapatos de salto de agulha e despir a saia apertada, mirou-se na superfície esquálida da colher que tirava de dentro da mala. O rosto inchava devido à curvatura convexa, assumindo uma postura flácida de manteiga em lume brando. Manteiga em lume brando…
Os olhos abertos, a rebentar de transparência. Palpitantes, ferozes de dormência, abusadores e acusadores, como os olhos devem ser…

A verem o que não queriam ver:
Bochechas a derreter.

Ela.
Não tinha nome. Afinal, ninguém tem nome. Ninguém tem nome.
E de tanto cuidado regrado a flagelar a rebelião, virou um número, uma parcela diminuta a compor as máquinas estatais, as de contar pessoas. Que as pessoas também se contam; afinal, que mais se pode pedir de um algarismo?

Morre o nome, morre a pele, morre a carne e o sangue. E Ela não morre, que os números nunca morrem. Vadiam até ao infinito.
Os olhos rebentavam de lágrimas.

Vestiu o pijama e calçou os chinelos. Arrastou-se até ao sofá. Ligou a televisão. Ainda tinha a colher na mão: mirou-se uma última vez. Rosto gorduroso de pele suada.
Foi dormir, que pensar faz mal a um número.

Comentários

Valter Boita disse…
Olá Ana! Mais um belo texto! Trata-se cada um deles de estilhaços de um livro por vir... aguardo-o.

«Foi dormir, que pensar faz mal a um número.» Nem convém que um "número" pense. Pensar é ter a ousadia necessária para procurar uma ideia que ainda não se fez palavra. Quanta imensidão de palavras ainda estarão por surgir, adiantadas por um pensamento filosófico ou literário. A escrita será o cruzamento essencial e fundante da realidade com o sujeito que a reflecte. Na escrita ousa-se o pensar e vai-se aonde as palavras nos deixarem, sempre com a esperança de nomear aquilo que ainda não tem nome.

O teu texto fez-me lembrar a ideia que se aloja no romance "Todos os nomes" de Saramago.

Boas férias e boas leituras!
Olá,
Estilhaços, parece-me um nome agradável. Por enquanto, é deixá-los assim, quietinhos... :)

Já viu a confusão que seria se um número pensasse? Basta olharmos à nossa volta e vermos a calma que os demais números desfrutam exactamente por não pensarem: dá tanto trabalho dar nomes às coisas, cruzar e relacionar ideias.

Nunca li "Todos os nomes", mas tenho ideia que já andei a destruir uma ideia de Saramago xD

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