foi-se (um)



Um parasita, um verdadeiro parasita, sem utilidade nenhuma, sem propósito na vida que não fosse aproveitar-se da comiseração alheia, apenas munido de uma carapaça velha e muito coçada, remendada no cotovelo direito, rasgada e imunda. Não estabelecia relações com ninguém em específico, mas sim com a sociedade em geral: parasitava as ruas, os cafés, as casas, as pedras da calçada.
E o tempo, para um ser deste calibre, não serve para nada; contudo, não fosse a sua existência obra da minha imaginação, e o dia que, entretanto, passarei a relatar, jamais se distinguiria dos demais.

A cidade vivia Março, e o aroma (o)cioso da Primavera mal se notava no meio de tanto suor humano, azáfama, produtos tóxicos e betão. O vagabundo, o parasita, acabava de esconder os cartões que lhe serviam de colchão, almofada e cobertor atrás de um marco do correio e, enquanto sugava uma beata religiosamente apagada (pois apenas a mantinha pendente no canto da boca para sentir o sabor do filtro e de uma réstia ínfima de nicotina, alcatrão e, pasme-se, saliva do seu antigo dono), observou o seu reflexo num carro impecavelmente limpo que estava parado no semáforo: barba comprida, cigarro curto, cabelo sujíssimo, botas e calças absolutamente destruídas pelas vicissitudes de um quotidiano desprovido de lar; feio, miserável e marreco a ponto de assustar as criancinhas.
Contudo, não era em si que os seus olhos depositavam atenção, mas numa mulher absolutamente deslumbrante que, mesmo atrás dele, comia um bolo com creme de ovo...


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