três histórias e uma só linha
Amo-te porra, dizias. Eu não.
É horrível. Mas eu não.
Talvez fosse enfim a hora de tirar umas
férias de mim. Sinto-o quando te vejo, tão linda, a passar os pratos
mergulhados de espuma debaixo da torneira. A água corre em fio da porcelana
delicada para a delicada forma das tuas mãos. O contorno milimétrico das
elevações da tua pele enruga-se em virtude do frio que o punge. Sei-o como a
uma evidência doentia. Como quando que te ouço lavar o corpo por inteiro no
chuveiro, mesmo antes de me levantar. Eu ainda na cama e tu já em lavagem
purgante para receber o dia prometido.
Querida, tu amas-me, mas eu não te amo.
Partir daqui para onde não me veja. Descansar dos meus dias, estes
dias, teus também. Dormir horas e horas, esclarecer que sentimento ruim vem a
ser este. Tu, metódica na lavagem da loiça, soltando dolorosos suspiros, protestando
à tua maneira a desadequada temperatura da água. Abres a torneira da quente,
resignada, e esperas com a face externa do teu dedo mais pequeno que esta se
queime. Já ferve. Candidamente, recomeças a passar o pano em cima das machas de
gordura. Vens-me à memória, e fazes-me adiar a partida. Instalaste aqui, sem
saberes obrigas-me a ficar – é aqui que te sei inequivocamente cruel.
Fecho os olhos e encosto a cabeça à cabeceira do sofá. Dobro o
jornal, como toda a gente, antes de o atirar ao chão. Sempre demasiado quente,
penso, estás sempre demasiado quente; ardes-me. Tu, álcool, eu, ferida aberta.
Nós?
Isto do amor é um gesto de limpeza, quando ficamos mais puros,
estamos disponíveis para amar. E tu ainda não paraste de lavar o mesmo prato. É
uma mancha que não sai.
Novembro é este mês insalubre. Meio-termo.
Castanhas assadas e vinho fresco. Novembro é eu olhar daqui, pálpebra
inconstante, a rua queda se sono. A cidade está nua. Não. A cidade está-se a
despir, lentamente. Não tem a vergonha que cobre os homens: tira a pele e
mostra os ossos, assume-se esqueleto. Um manto verde infantil vem cobrindo a
terra; não é erva rija, mas sim um anúncio tenro à aproximação da chuva e dos
dias carregados de nuvens. O castanho aviva-se no seu próprio tom, é uma cor de
terra viva quando tudo o resto vai gentilmente morrendo, devagar, suavemente.
Novembro é este mês de confissão e remissão. O sol pede desculpa por ter estado
tanto tempo, e promete voltar quando por hora do solstício tudo for vibrante
alegria e festa de Natal.
Voltas da cozinha. Eu desperto. Peço-te que me perdoes em todos os
minutos, embora nunca o tenhas ouvido. Estás enganada pela facilidade com que
se confunde fome com amor. E ao ritmo com que a cidade se despe, vou eu deixando a minha alma vazia, virgem de qualquer sentimento maior.
Devoro-te, e isto ninguém conhece. Como a um alimento que se quer dentro de si para sobreviver. Permites-me a sobrevida numa só linha.
Ogród Saski (Saski
Garden) - Warsaw
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