não volto lá
Tesoura.
Duas lâminas e uma charneira. Força de circunstâncias impelidas por Ela, a
puta!
Lá
estava o pequeno afunilado de cabelos, sereno e amarelo, a ser retraçado pela
tesoura. Não havia pontas para deixar certas, nem madeixas com destino; apenas
contava levar o máximo, levar todos.
O
chão era o endereço de cada madeixa desmazeladamente ceifada. Acima e em baixo,
ao lado e por trás, estas eram saqueadas à sua pequena senhora. Cobriam
voluptuosamente os ladrilhos beges da sala.
Não
sentia a dor, mas sim a frieza subtil de um sofrimento dissimulado pelo sibilar
das lâminas que deslizavam sobre os fios dourados. Ela não chorava, mas
ouvia-as cair e sabia que algo ia mudar. Esboçava um sorriso de encorajamento a
alguém que já estava morto de forças para suportar tal visão.
Com
uma fita, prenderam-lhe uma última prega, que dali saiu para ser guardada, e
recordada, no interior bafiento de uma caixa.
Por
fim, a nuca brilhou à luz branca das lâmpadas fluorescentes. Nunca mais lhe
fariam o mesmo.
Sentado
numa cadeira afastada, um homem de expressão grave observava a cena. No seu
estômago, cresceu uma sensação de asco tão grotesca que qualquer ideia que
possuísse lhe fugiu da mente abafada pelo tumulto da barriga. Tinha o espírito
vazio; estagnado, enquanto os olhos consumiam cada fracção daqueles cabelos, na
esperança vã de os recolocar no seu ponto de origem. E a boca permanecia aberta
o suficiente para ressequir a língua, fazendo movimentos desconsolados de um
chamamento surdo. Oh, como doía; como destilava o sangue na vista suplicante.
Num
movimento indolente, saiu à rua e retirou a roupa. Prostrou-se nú aos pés da
cidade, que o esmagava com a doce tortura da vergonha. E o vento, gelado e
cortante, beijou-lhe cada canto do seu corpo, levando-lhe a vontade de voar em
devoção por todos aqueles a quem um simples corte de cabelo era um sinal
evidente de que as asas tinham sido cortadas.
12
anos.
Recordo.
É a mais triste recordação.
Escrava
dela, tremo e vacilo, incólume contudo. Agoniza e faz remoinhos no crânio,
porque reviver também ofende.
Comentários
Pensei que estava a pensar mal... Sei lá... Queria fugir, mas fui ter a um beco sem saída sem nem sequer poder voltar atrás...
Mas as certezas vieram ao ler as ultimas frases!
És uma lutadora e não tens que ter medo nem fraquejar! E se assim for Eu estou AQUI!!!
beijinho*
mas que temos nós para além das memórias? Posses e dinheiros? Posses e dinheiros não servem, não aconchegam a alma, não magoam o nosso interior.
Reviver também ofende, bem o dizes, mas também foratlece. Também ajuda a passar a dor do lembrar. também ajuda a sarar. ;)