mar, metáfora da vida
"Diz-me
o espelho que tenho ombros largos, olheiras profundas e nariz pronunciado.
Rugas onde se entranha poeira a contar-me dos quarenta anos que carrego.
Adivinho o mar, tenebroso e belo, ventre de vida aquosa, silenciosa, escondida
e embalada pela espuma das ondas. Cloreto de sódio e hagá dois ó, fora todos os
minerais, substâncias que me enchem cada poro e eu que preciso de fazer vida,
com a ânsia de um louco. Deus esqueceu-se de mim." Assentou pela primeira
vez a data, sinal de que o que ali se escreveu havia finado.
Guardou
o manuscrito dentro da gaveta, ladeada por um enxoval de penas, tinteiros e
papéis.
No
convés, marujos de gestos ásperos e curtidos pelo sol e pelo sal, respiravam a
vida que o mar lhes reservou. Longe da cárrega de um quotidiano preenchido por
cargas e descargas, crianças a gritar, mulheres com o diabo no corpo ou mães
lamechas. Longe da terra que louva o céu. E o conforto, caprichoso, teimou em
não partir com eles.
A
solidão dos últimos e dos únicos. Uns comidos pelo escorbuto, outros por
bichos. Se houvesse gente com sorte, morriam de fome, que sempre era menos
doloroso. E a força, abençoada força, que os impelia a içar a vela numa
tentativa vã e quase infantil de reclamar o seu pedaço de dignidade.
Fome,
bichos, doenças, loucura. Raiva, medo e saudade. E tudo isso era limpo, puro e
cru, natural. Não havia naquele mastro uma mancha de corrupção nem a ilusão de
uma felicidade insípida e sórdida. Se, a algum deles, faltava o dedo mindinho é
porque a Natureza o reclamou; e se esta chegar a pedir-lhes o corpo e a alma,
que os leve também.
Tinham
as almas vazias de motivos para regressar ao calor dos braços de uma mulher,
fosse ela mãe ou amante.
Por
fim, a tempestade chegou, e trouxe um feixe de trovões e chuva e desgraça. O
bom barco ficou feito em dois, e afundou levando ao fundo do oceano vil e
herege a gente do capitão.
E
nunca mais ninguém diga que mar é metáfora da vida.
Figueira, Julho de 2008
Comentários
Conheço esse título de algum lado.. Esclareces.me?