arrumar a mala
A morte é somente uma questão de saudade, a
simbiose da inércia com o estado do Homem, a plenitude espelhada no rosto de
quem alcança, finalmente, o princípio. É tudo paz e serenidade, um simples
corpo que se deixa fatiar a partir da ponta do bisturi, não exigindo nada, a
não ser um profundo apreço.
A máquina está parada, não obstante,
permanece perfeita no sossego das engrenagens. Já não se ouve o sangue a ferver
silenciosamente nos capilares, nem a linfa a lavar as células: todas as
metáforas para Vida se apagaram com o desembrulhar do tempo; apenas um brilho
silencioso brotando dos músculos que se vão desvendando, de um ou outro tendão
que se move, e que permanece solto a cada prega que se rebate.
E a tranquilidade – aquela tranquilidade
quase perturbadora de um animal doméstico – é o único traço que se pode casar
com um ligeiro horror, um aroma ligeiramente fétido e uma névoa que consome a
atmosfera do teatro.
Entretanto, descobrem-se hematomas de
feições horrendas e tingidas de roxo. De uma violência arrebatadora - são os
últimos traços daquela antiga luta que remonta a “desde sempre” (more lá ele
onde morar) e que é, invariavelmente, uma sucessão de derrotas, ser a ser.
Tudo isto vai dentro da mala: tão doentes,
tão vivos, tão mortos. E saudade. E estagnação. E ruído. E silêncio.
mãe
a vida é esta merda
dela só o cheiro se herda
Canção da Lua, Foge Foge Bandido
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(Bernardo Soares, 'Livro do Desassossego')