condenados
Com os joelhos vincados no chão,
prostram-se a Deus todo-poderoso, todo-homem, todo-tudo, e de mãos espalmadas na
perpendicular que lhes serra o peito, debitam as rezas e as preces que lhe
incumbe a Humanidade em seu nome: nome que mascara esta gente pecadora e
ignominiosa, tudo escrito a letras grandes, para que sejam reconhecidas bem
além de todas as fronteiras.
E se a sua voz chegar ao lagar de nuvens
frescas onde Ele se senta com o filho à direita do pai, deixando vago o lugar
da esquerda, onde, creio, viverá um coração para, poupem-me a repetição, manter
vivas as duas partes - e queijo fresco e compota para a merenda – e se a sua
voz chegar ao Seu lagar, dizia, talvez desça à nave a terceira peça da tríade tantas
vezes nomeada: ora já foi o pai, mais o filho, resta o espírito santo, e compadecida
pelo sangue que brota a jorros das articulações mal-formadas, responda às rezas
e lhes fale com essa sua voz tão particular e tão pouco ouvida; valham-nos
Abraão e Noé, que sempre apuraram o ouvido a Deus e não se esqueceram de deixar
tanto a Palavra, como o aparelho que A permite ouvir.
Diz:
Executo na guilhotina das vossas súplicas
todas as almas que o Bem condena pelo Mal, e ao Mal pelo Mal, em seu nome, que
é vosso por irmandade.
Tendes as carnes fervendo sob as vestes do celibato
que vos tapa as vergonhas, jamais a vergonha.
Carrasco confesso dos que se cofessam a
Mim, assassino bendito pelo lei do Homem, que é igual à do Diabo.
E enquanto se escreve o que o Outro vai
dizendo, desenha-se ao fundo um monte escurecido pelo brilho da Luz que se afasta
e, lenta e placidamente, vai pintando amarelo sobre azul, sob laranja. Amanhã é
dia de tempestade – aposto!- e o céu descarregará a sua raiva húmida sob a
forma de pequenas gotas, encharcará mundos
e fundos, cobrirá a relva de mão fechada, em seu derrame líquido e
purulento.
Dizia:
Levanto a mortalha e deixo-a pairar sobre
vós, tapando-vos no calor dos vossos corpos incólumes e vítreos, que a água
benta que vos baptiza, abençoada seja, também vos cai no dorso da sepultura,
naquele derradeiro dia em que a sentença é ditada – estais votados ao
esquecimento, ámen.
Suporto de cima o chão batido e dele sorvo
um perfume a almíscar, que apenas pode anunciar que os ratos foram mortos e as
suas tripas revolvidas.
Abaixo entrecruzam-se as rectas
tridimensionais que compõem a topografia das almas, entrecortadas pelo marulhar
das veias, quando morrem na costa – e graças se dêem à Lua por puxar mar à
frente e logo o empurrar atrás.
Tudo salta da terra em pulos mesquinhos, e
depois é ceifado e cozinhado, comido e regurgitado.
Tudo é sinónimo de tudo e desde o início
dos tempos que o Éden é lugar de insatisfação e desgraça.
Portanto, calai-vos com as lamúrias e que o
vexame de serem ignorados vos apoquente, que o da esquerda lá ficou: à esquerda,
amplificado no seu trono anémico, mortiço e escanzelado, ou não fossem tantos
os anos que tem, quantos os do Meu tempo.
E ainda com os joelhos bem vincados no
chão, tombam um a um, chacinados pelo machado célere que os vai decapitando –
toma tu, agora tu – , as cabeças rolando de olhos ainda abertos, as lajes marcadas
a vermelho e o retomar da respiração, em bafos curtos e dolorosos, pelos
pulmões desmembrados, marca o único espirro mudo que a aorta solta.
Vem então o cangalheiro, que lhes cola
cirurgicamente os galhos no corpo, e depois de duas chapadas, uma em cada face,
ressuscitados e despertos, seguem pregando que o Senhor é bom e a Humanidade abençoada.
Fotografia: Annette Pehrsson
Comentários
Desculpa.
Está poderoso.