menina brigida (v. m.)
Olive
Trees, Vincent van Gogh
ou Os Fantasmas
de Brigida
Sentada num
banco forrado a veludo, dedilha as teclas do piano, martelando suavemente nota
após nota todas as notas da música que inventa. Cai chuva na sala do piano,
chuva que não se sente, mas que se espalha na terra ressequida com a sua tez
fecunda e molhada, e toda ela irradia a promessa de uma existência nova e
descomprometida.
O corpo fininho
de Brigida balança-se, trás e frente e esquerda e direita, dançando sentado ao
som do fruto pelas mãos parido, gerando a cada novo movimento mais uma linha na
pauta e outra no ar: tangente,
normal, normal, tangente… eis que a força se toma em proporções relativas ao
espaço e à gravidade, embalando o corpo num movimento circular, por finalizar
em extensão e em tempo, variado. A corda melódica rodeia o dorso delgadinho de
Brigida, consome-se num nó, prende-se ao tecto e estende-se ao limite –
somemos-lhe a tensão, igual a co-seno do peso mais produto da massa pelo quociente da velocidade
(ao quadrado), e vira o disco e troca o passo.
Os contornos da
sala estão desenhados a cal de outros tempos, as paredes iluminadas pelo gingar
das chamas na ponta dos candelabros meio acesos, meio apagados, os estofos das
poltronas estão mordidos pela idade e as mesinhas de apoio a livros, copos e
beatas há muito deixaram de se assemelhar a outras da sua espécie.
Sobrevive o
velho instrumento de cordas e a chuva que fura o telhado.
Para sempre,
para nunca mais: metade do vazio está por encher.
Então, eles
apareceram à janela:
Welcome, Ghosts, cumprimentou Brigida, branquinha e serena, sem os
fitar. E o cumprimento foi acompanhado pela candura de um sorriso pálido, com
os pés pequeninos balançando ao som da melodia, que não deixou de ser
produzida.
E se o isqueiro
ficasse aceso?
E se todas as
flores murchassem?
E se as mãos se
amarrasem nos bolsos?
Brigida já não
tem medo: os ossitos rompem pela pele, e nem o vestido florido os esconde.
Permanecem resistentes os cabelos, imaculados na sua textura aveludada,
perfeitamente lisos, amorosamente penteados.
Pensando que
pensa, navega no vazio, não
existem forças exteriores ao sistema que a afectem, não há um grito vosso, um
sorriso mesquinho nem uma palavra do mais reles que interfira no suave
deambular do seu organismo, restringindo-se a observar, do baloiço improvisado,
sulcando as coordenadas, marcando posições, derivando velocidades e
acelerações…
A sala
iluminou-se. A música findou. Os fantasmas multiplicaram-se, e de sete passaram
a oito, mal medidos, lá nas paredes podres e mal forradas da sala do piano, que
espera a sua menina.
Metade do vazio
está um pouco mais cheio, retratado no pedaço de papel onde dorme, pequenina,
de mãos pousadas no teclado e a cabeça tombada sob a tampa fechada, não
chegando os pés a roçar o chão - um para cá, outro para lá - como quem valsa,
que a tua ausência,
Brigida, ainda pernoita nos escombros de uma fotografia,
e jamais
descansará no seio dos ciprestes.
Amélie e Al Berto
10 de Agosto
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