mesmo no meio do caos
O
cabelo da Rosa molha as pontas no sumo enzimático que lhe brota dos lábios meio
abertos. Está latente que o seu corpo funciona e tamborila arritmadamente, ou
não fossem os fios do dito acima referido moverem-se como enguias bem lambidas
por um vento que se espreme entre a folhagem amarelada das árvores, hibrida
como o próprio Outono, ali entre o calor dos longos dias e o frio dos mais
curtos. E voam as folhas com os cabelos, embora livres e solteiras, ardendo
rumo à sepultura.
Ia
jurar que é só mais um peixe de guelras podres. Um batráquio de pernas
mirradas.
Um
estertor ruidoso estala-lhe aos ouvidos e grita e geme e decalca palavras que
tantos moribundos deixaram por dizer, na hora do seu derradeiro sofrimento.
Eu e não-eu enlaçam-se, engatam-se e
fecundam-se. Assobiam tranquilamente, enrolados de sobremaneira, de
sobremaneira esgotados, atónitos e escandalizados com a sua tão lasciva proeza.
A
Rosa faz a barba, rapa o bigode porque não gosta que lhe tire o brilho aos
cabelos. Faz a barba e faz as unhas, também tira a cera dos ouvidos e as
ramelas dos olhos com a navalha. O seu objectivo é claro: talvez um dia ceife
algo mais além de merda, talvez um dia rompa a artéria que alimenta todo o
caos, que a alimenta a ela.
Esse
dia, para não ser simplória e previsível, não é hoje, no entanto, podia.
Tampouco é um dia. É ontem, isto é,
todo o momento anterior ao deste momento, um instante tão fugaz que
não poderá ser recordado na memória dos relógios, muito menos das pessoas,
conclusão estúpida e subversiva, já que… E passa. E passa. E passa. Antes
deste, e deste e do próximo.
O
importante é que, finalmente, haverá sangue, que se espalhará em redor da ruiva
cabeleira, igualmente estendida ao longo do gume da navalha que, por sua vez, invariavelmente
se terá estendido em toda o comprimento do vaso algures no tempo perfurado, que
abre – ou abria? -caminho por aí fora, ou por aqui adentro.
Não,
senhores, a Rosinha não está morta, mesmo que alvas sejam as suas feições.
Ainda não.
Nem
sequer lhe entreguei a alma, que dorme no lugar que resta na minha cama.
Por
favor, atentem bem:
Uma vez entregada a
alma, segue-se tudo com uma certeza
infalível, mesmo no meio do caos.
(H. Miller, Trópico de Capricórnio)
Antes duvidar [até] da identidade do meu rosto.
Comentários