primeiro o louco
Ela não queria estar ali,
este era o único facto importante. Outro não menos importante é que não tinha
nada a dizer em sua defesa.
Mas tu tens de ir! Ninguém te vai fazer mal, só te queremos
trat... ajudar.
Com este argumento enfiaram a criança no carro, chorosa e
assustada, e com este argumento também a fizeram entrar na clínica alva, e os
alvos sorrisos que a esperavam traziam-lhe mais dor e agonia.
Não quero estar aqui, eu não estou doente.
Como te chamas?
Mãe, vamos embora, eu não quero falar com esta senhora.
Nunca um hospital lhe tinha parecido lugar tão feio e sinistro;
sentada numa das muitas cadeiras verdes, esforçava-se por se manter concentrada
num propósito por demais válido - roía as unhas, roía a mucosa dos lábios, e um
ligeiro travo a sangue denunciou que já se tinha ferido. Cumprido.
Pára quieta! Que mania estúpida de te morderes.
Tremia, estava pálida. Nos dedos, a pele roída e dorida acusava
muitos anos de vício; no anular direito tinha uma ferida já de crosta feita.
Estou farta de te dizer: qualquer dia caem-te as unhas.
A menina mordeu o lábio outra vez e piscou nervosamente os olhos,
e nem isso demoveu a ira materna.
A mãe: mulher ríspida, neurótica, com tendência para a depressão, très
chic, sempre cavalgando dez centímetros de tacão e dois de plataforma,
coberta de peles e pedaços de pedra brilhante, com grandes brincos ornamentando
as orelhas, carteira de marca, cabelo impecavelmente penteado. Nada nesta
mulher bem sucedida, ainda que atacada de nervos de sobremaneira, era
indicativo de crise familiar; melhor, ela não deixava sair consigo à rua a
criatura anormal que criara e que, com tanto empenho, tentara desviar para uma infância feliz e socialmente aceitável, sem mazelas nem dramas lunáticos. Para toda a gente, a sua vida
era perfeita, marido respeitável, filha adorável.
O pai: marido respeitável, disse. Acrescentemos-lhes um prefixo de
certo modo peculiar, dada a sua extensão: aparentemente. Portanto, temos um pai
que é marido aparentemente respeitável, excepto quando
falha a resolução de pequenas tragédias caseiras, como esta que agora
enfrentam... No entanto, que importa se a miúda tem visões quando a vizinha tem
entre as pernas escape para todas as suas angústias? E agora ai, depois ui,
quando voltarem logo se vê.
Já no consultório, uma mulher de cabelo pelos ombros e óculos
escorregando para a ponta do nariz sorria simpaticamente. As mãos estavam
pousadas sobre uma pilha de papéis, e com o indicador convidava mãe e filha a
ocuparem os seus lugares.
Então, que se passa?
Durante muitos
anos, tive de lutar contra os olhos que me espreitavam entre as frestas das
portas, o receio de que um corpo translúcido me surgisse ante a esquina do
corredor da minha própria casa. As expectativas dilaceravam-me de terror,
chorava ansiosamente por não conseguir saber, dentro de uma sala escura, quem
poderia estar atrás de mim, e já no meu quarto, de pernas cruzadas me sentava
em cima do colchão, candeeiro do tecto e da mesa-de-cabeceira acesos, luz tão
intensa que me feria os olhos, e mesmo assim, mesmo submersa em radiação e
evidência clara de que as portas estavam bem seladas e os estores
inequivocamente corridos, eu temia que um braço saísse de debaixo da cama, com
os dedos andando sobre a carpete e atrás de si arrastando um membro amputado a um corpo qualquer...
Mas o mais
terrível era o medo de que a noite fosse um lugar habitado apenas por mim. Via
o sono enquanto morte momentânea da qual, quiçá, poderia não despertar. Era um tempo verdadeiramente morto,
esse em que os homens se deixavam levar em morfeus e braços de outras
divindades, e noite atrás de noite eu lutava contra o fecho das minhas
pálpebras, temendo morrer entre lençóis e cobertores, de cabeça mergulhada na
almofada e alma irremediavelmente levada para longe. Por outro lado, contribuía
concomitantemente para a minha insónia a ideia de que todo o mundo estivesse
morto deixando-me a mim, tão pequena, viva entre milhares de cadáveres.
Assim,
provocava-me horror ardente tanto a insónia, como o sono, e o presente por
ter medo de não chegar a conhecer o futuro.
Eu só quero ter a certeza de que alguém estará acordado. Promete!
A dos óculos na ponta do nariz torceu o lábio e arregaçou a
sobrancelha. A mãe agitou-se na cadeira, sorrindo como se se estivesse desculpando
pela intervenção absurda da filha.
Minha querida, há certamente pessoas...
A minha cabeça
era, por isso mesmo, um reino de possibilidades não consumadas, palco de imaginários múltiplos,
bons e maus. Afinal, sei hoje que nunca me chegou a realidade, a vida que vivia
sem nenhuma surpresa, a vida que vivia constantemente embrulhada em pânico e
lágrimas. Afinal, sei hoje também que nunca me chegou esse universo paralelo
que suspeitava que existisse. Afinal, sei hoje que não sei onde estou.
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