abril é um dia de maio
[o editorial da 44, escrito a quatro mãos, a propósito dos 35 anos de sns em portugal, 40 de liberdade]
É
motor aquilo que produz energia mecânica, contraria a inércia e leva ao movimento.
De todos os motores possíveis, foquemo-nos no elemento metafórico daquele que
se apelida “a quatro tempos” – admissão, compressão, explosão e exaustão - para
introduzir o quadragésimo quarto número de uma edição que tem como mote informar
os médicos do futuro, perturbá-los e fazê-los mexer.
Um. Ar e combustível preenchem a câmara –
urgente uma reflexão sumária de um passado recente da Saúde em Portugal, pois
nunca os desafios foram tantos nem tão grandes para uma instituição
fundamentada no adagio “A saúde não tem preço”.
Dois. Movimento do pistão - claro que a sáude
tem preço, ou não absorvesse aproximadamente 10% da riqueza produzida nos
países desenvolvidos. Estaremos então a assistir a uma mudança de paradigma a
favor da banalização de uma valor assaz básico? O presente é um momento de rapidez
exagerada, difícil de preparar e acompanhar, sempre dicotómico: compressivo e
asfixiante, sem tempo. Consequentemente, o melhor médico do futuro será aquele
cujos reflexos sejam mais apurados.
Três. Uma centelha incendeia a mistura - como
será a prática médica daqui a dez, quinze ou vinte anos? Em Portugal teremos um
SNS renovado ou terminado, vendido a retalho? Privados dominando o mercado e
prestando um serviço mais eficaz? Ou os indicadores de saúde descendo a
pique, para níveis pré-25 de abril?
E o
que dizer da nossa conceção do elemento mais misterioso do corpo humano: a
consciência? Haverá espaço para divagações metafísicas no ano de 2050? Ou a
ciência continuará incapaz de desvendar os labirintos do cérebro? A verdade é
que o futuro é um lugar difícil de prever.
Quatro. A válvula abre, libertando os produtos da
combustão - os ensinamentos que o estudante de medicina recebe na faculdade têm
um prazo de validade; mais cedo ou mais tarde estarão desatualizados, senão
ultrapassados, pelo menos complementados por mil e uma novas informações. O
melhor médico será o melhor adaptado, capaz de se renovar e atualizar mesmo no
limite da sua vida ativa; será aquele que aliará, sem dúvida, o conhecimento
com uma capacidade crítica assinalável – capaz de trabalhar em equipa, seguir
normas de orientação, mas, simultaneamente, pronto a questionar as decisões a
cada dia. O médico do futuro é, por norma, um político e um gestor em cada uma
das suas decisões clínicas, na medida em que terá de dominar a arte de gerir
recursos (humanos e financeiros) escassos, tendo as suas ações por base um
princípio fundamental de Justiça.
O motor que nos leva rumo a um lugar
desconhecido não tem travão que o pare: à sociedade portuguesa cabe saber
conduzir a grande máquina. Que Saúde desejamos para o nosso país? Para isso é
fundamental ler, criticar duramente, fazer de novo tantas vezes quantas
necessárias. Há um legado que temos de preservar: os cravos nas pontas das
espingardas, a democratização dos direitos essenciais, a dignidade na doença, o
respeito pela igualdade do ser que sofre. Conscientes do fim, façamos da
exaustão o tempo imprescindível, fundamental para que Abril não seja mais um
dia de maio.