arrumar a mala


A morte é somente uma questão de saudade, a simbiose da inércia com o estado do Homem, a plenitude espelhada no rosto de quem alcança, finalmente, o princípio. É tudo paz e serenidade, um simples corpo que se deixa fatiar a partir da ponta do bisturi, não exigindo nada, a não ser um profundo apreço.
A máquina está parada, não obstante, permanece perfeita no sossego das engrenagens. Já não se ouve o sangue a ferver silenciosamente nos capilares, nem a linfa a lavar as células: todas as metáforas para Vida se apagaram com o desembrulhar do tempo; apenas um brilho silencioso brotando dos músculos que se vão desvendando, de um ou outro tendão que se move, e que permanece solto a cada prega que se rebate.
E a tranquilidade – aquela tranquilidade quase perturbadora de um animal doméstico – é o único traço que se pode casar com um ligeiro horror, um aroma ligeiramente fétido e uma névoa que consome a atmosfera do teatro.
Entretanto, descobrem-se hematomas de feições horrendas e tingidas de roxo. De uma violência arrebatadora - são os últimos traços daquela antiga luta que remonta a “desde sempre” (more lá ele onde morar) e que é, invariavelmente, uma sucessão de derrotas, ser a ser.

Tudo isto vai dentro da mala: tão doentes, tão vivos, tão mortos. E saudade. E estagnação. E ruído. E silêncio.

mãe
a vida é esta merda
dela só o cheiro se herda
Canção da Lua, Foge Foge Bandido

Comentários

Filipe disse…
"A mim, quando vejo um morto, a morte parece-me uma partida. O cadáver dá-me a impressão de um trajo que se deixou. Alguém se foi embora e não precisou de levar aquele fato único que vestira."

(Bernardo Soares, 'Livro do Desassossego')

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