o manel cortou o pé


Não soube, jamais, quando deixei de amar a subtileza das tuas curvas, tampouco quando é que a suavidade das rectas articuladas, apenas de as observar, me deixou de causar espasmos de prazer - são idiossincrasias próprias dos sentimentos avulsos pelo que habita o mundo. Todas as formas geométricas, todos os pontos conjugados no tempo e no espaço. Tudo em ti perdeu expressão e significado. Tudo em  ti morreu como quem se deita calmamente à sombra de um carvalho numa tarde de verão, em que o sol expande os seus raios ardentes sobre toda a superfície da Terra, e toda a Terra e a sua superfície destilam e borbulham, adormecendo enfim num sono sem retorno.
Não soube.

tapar-te-ei com os meus cetins

E eu juro que tentei com toda e qualquer parte da minha pele, esticando derme e epiderme em medidas iguais, garantir que conseguia em mim espaço absoluto para te recolher. Busquei em mares de outros donos os tecidos de seda mais finos, mais macios e mais lustrosos que podia encontrar. Com regra e esquadro, delineei as medidas certas. Eu mesmo cosi a bainha com linha condizente, e vi saltar da ponta romba do meu dedo sangue igualmente meu, mistura líquida durante alguns instantes, também ela cetim, também ela lustrosa e macia, pingando placidamente das artérias do meu corpo para os ladrilhos sujos – assim o meu corpo iniciava um protesto à tua presença. Porque o meu corpo, ao contrário de mim, nunca gostou de ti. Foi este o prelúdio do episódio que se seguiu.

Sou um em trinta, revolvo a terra na tentativa de encontrar algo mais para te alimentar, cavo aqui e ali e agora foi o meu pé que cavei: uma dor aguda e excruciante electriza-me a fina curva da minha coluna, propaga-se pelo tronco e pelos braços, mas é o pé amputado que reclama a atenção perdida. Vinte e nove em minha volta, e nenhum sabe estancar a torrente vermelha que jorra fluida. Uma mulher vem vestida de farrapos, lá do fundo de um barranco, e da roda da sua saia rasga uma faixa de tecido imunda, enrola-a em mim e em pouco tempo o céu acima de nós, vertido em reflexo do vasto oceano azul, se apaga aos meus olhos, e cada rosto pregado ao meu se vai desfocando e consumindo em si mesmo.

Agora, tudo é esta eterna monotonia desconcertante, promessa irremediável de que o tédio, ali à porta espreitanto, veio ocupar o seu lugar perpétuo ao meu lado… Quanto tempo dura o tempo já não é mais uma questão relevante; doravante, o tempo será apenas e nada mais do que todo o tempo, e o meu corpo é lentamente transportado para outro lugar, onde o pó de sete palmos sobre mim carregados me virá enfim comer.
Vai-se todo o cetim, vai-se toda a pele, vão-se os ossos – um por um, dois ou três em simultâneo.

Ah, vida!, eu não soube, jamais, quando deixei de amar a subtileza das tuas curvas. Nunca saberei! Tentei reter-te em mim, e repetia, como agora repito,

tapar-te-ei com os meus cetins

Mas tu és demasidado grande para o homem,

como se o meu corpo fosse um risco no céu

Vou-me ainda antes de chegar o cangalheiro com a mortalha em riste.
(...)

Que maneira estúpida de ser mais um risco no céu.


Manuel Marcha
***
Prova Literária 2012,  tendo como mote 
tapar-te-ei com os meus cetins como se o meu
corpo fosse um risco no céu.
                      Jaime Rocha
in Necrophilia, Relógio d'Água, 2010

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