a liberdade segundo clarice

"Pois não é que quis descansar as costas por um dia? Sabia que se falasse isso ao chefe ele não acreditaria que doíam as costelas. Então valeu-se de uma mentira que convence mais que a verdade: disse ao chefe que no dia seguinte não poderia trabalhar porque arrancar um dente era muito perigoso. E a mentira pegou. Às vezes só a mentira salva. Então, no dia seguinte, quando as quatro marias cansadas foram trabalhar, ela teve pela primeira vez na vida a coisa mais preciosa: a solidão. Tinha um quarto só para ela. Mal acreditava que usufruía o espaço. E nem uma palavra era ouvida. Então dançou num acto de absoluta coragem, pois a tia não a entenderia. Dançava e rodopiava porque ao estar sozinha se tornava l-i-v-r-e! Usufruía de tudo, da arduamente conseguida solidão, do rádio de pilha tocando o mais alto possível, da vastidão do quarto sem as Marias. Arrumou, como pedido de favor, um pouco de café solúvel com a dona dos quartos, e, ainda como favor, pediu-lhe água fervendo, tomou tudo se lambendo e diante do espelho para nada perder de si mesma. Encontrar-se consigo própria era um bem que ela até então não conhecia. Acho que nunca fui tão contente na vida, pensou. Não devia nada a ninguém e ninguém lhe devia nada. Até deu-se ao luxo de ter tédio – um tédio até muito distinto."

in A Hora da Estrela, Clarice Lispector

Ou o retrato feliz de uma noite qualquer. Uma noite minha - qualquer. E que até o tédio seja muito distinto no livro que inaugura o meu novo ano de leituras, como se.

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