um copo de água, por favor

Estava um copo de água esquecido sobre a mesa da esplanada. Era uma mesa de pé de galo alto, oxidado pela acção nefasta da chuva e do ar sobre o ferro, efeito este que a tinta verde, agora solta a pregas grossas, tentava disfarçar. E o copo, esse, estava polido e brilhante, contendo água até pouco mais de meio e tinha a particularidade de observar a rotina.

Por aquele copo, pousado naquela mesa daquela esplanada, já havia passado demasiada gente em azáfama louca, desnorteante.

Eram crianças que berravam para desespero dos pais, casais idosos que discutiam, amantes apressados em dar voz ao que dizem ser amor, executivos de pasta na mão que nem o olhar altivo conseguia esconder o cansaço, jornaleiros e homens dos gelados, bêbedos de alma destroçada pelo álcool… Enfim, gente vulgar, de gestos vulgares, de cujas bocas só saiam palavras vulgares, que a rotina (ainda mais vulgar) havia moldado assim.

E como eram todos tão adaptados ao vulgo, ninguém teve a originalidade de reparar no insignificante copo de água, excepto um velho de óculos de massa, que tinha oculto nas pregas do rosto 70 anos de rotina. Há já algumas horas que havia pousado o seu livro (ainda aberto sobre as suas pernas traçadas) e mirava atentamente o alvo da sua originalidade; a água, limpa e clara, reflectia acusadora toda a estúpida sincronia humana, ridicularizando até ao mais repetitivo atropelo.

O relógio consumiu o tempo, a tarde passou e quando o sol soltou o seu último esgar, o velho guardou o livro, levantou-se e, desconcertado, embrenhou-se novamente na rotina.

Ali ficou o copo de água, até que um empregado de rosto soturno carregado por um farto bigode (eu ousaria dizer que a própria sorumbacidade do homem fora obra da rotina) lhe pegou com um movimento automático, reclamando-o de volta às profundezas do armário bafiento que lhe servia de lar.
E assim venceu a rotina sobre a divergência.

- Tenho sede. Um copo de água, por favor!