languidez #2
“Acudam! Por favor, acudam! Ele
está aqui!”
Passos,
gente a correr; o mundo inteiro estava nos seus ouvidos, a latejar
histericamente, com os seus instrumentos tecnológicos a zumbir.Uma mão quente
passou pela sua testa. Passou também pelas maçãs do rosto e travou junto aos
lábios. O rosto estava dormente, como se alguém o tivesse desligado do resto do
corpo, e quando, finalmente, deu por si, notou um trago amargo a roçar a sua
língua, um trago acetinado e escaldante, um trago a sangue; ainda que possuísse
os sentidos [inexplicavelmente] afectados, conseguiu aperceber-se que este se
espalhava pelo canto esquerdo do lábio. Alguém gritou.
Ouviu,
como ruído de fundo, o jardim a cantar em surdina, as pessoas que se acumulavam
chorando fininho.
Tentou
levantar-se, mas em vão. De oitenta quilos a velar a sua massa corporal,
parecia agora ter oito mil, que, de um modo arrepiante, o prendiam ao chão.
Vieram depois uns braços, armados de força, arrancá-lo da terra.
Ainda
conseguia cheirar o perfume dos seus lençóis. E mais gente se acumulava,
enquanto ele, inutilmente, padecia imobilizado por ligaduras invisíveis,
amordaçado de olhos fechados à roupa fresca da cama.
Quis
levantar-se, quis saber porque choravam tanto. Distinguia as lágrimas da mãe e
quis compreender que pranto de morte era aquele. Em vão.
Depois,
saiu toda a gente, e chegaram os médicos (que ele distinguiu pelo uso de termos
técnicos indefiníveis) apalpando, mexendo, tocando, começando a despi-lo. Como
tinham as mãos quentes! Molharam o seu corpo, limparam-lhe a boca ensanguentada
e sentiu que estava gelado.
-
Podes confirmar, o desgraçado não passa daqui, dizia uma voz sem rosto.
-
Tens a certeza? Sabes bem que só isto pode não chegar…
- Não
vês bem que chega? Não há o mais pequeno indício de que a situação se possa
reverter.
-
Pronto, tu é que sabes. Que hora ponho?
Ouviu-se
o roçar da camisola numa bracelete de metal.
-
Ora… seis e cinquenta e oito. Vamos embora, o nosso serviço, e o dele, acabou
aqui.
Saíram
e entraram mais duas pessoas que o vestiram, calçaram e pentearam, como se
fosse um inválido. Mudaram-no de sítio outra vez e deixaram-no estar ali
durante muito tempo. Sabia que estava num local mais escuro, e a toda hora
tomava conta de uma roda viva de gente chorando, gente que lhe tocava o rosto,
que o adorava candidamente ou que ali aparecia somente para lembrar o ódio que
sentia por ele.
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