a sesta - dois
A Criança, vexada perante a reprimenda
da mãe, ergueu a cabeça e limpou rapidamente as lágrimas na borda da sua saia,
num gesto de pronto consentimento - nessa tarde, não chorou mais.
Por fim, chegaram a uma zona do
cemitério onde o branco do mármore dava lugar à terra revolta e árida,
ressequida pelo calor.
-Além, naquele terreno moído pelo
enfado do Sol, está o teu irmão – disse a Mulher, apontando para uma montanha
de terra recentemente mexida. - Conseguia sentir o perfume dele em qualquer
parte.
A Criança arregalou muito os olhos; o
seu olhar, nervoso, percorria o caminho que a separava do lugar indicado,
recolhendo coragem em cada centímetro que observava. Vacilou, mas depois,
novamente empreendendo o passo decidido com que entrou na vila de Santa Cruz, correu
para o lugar onde estava o corpo de Carlos e aí se prostrou de joelhos. A Mulher,
por sua vez, percorreu languidamente o trilho que se enrolava entre outros
montes similares, contabilizando mentalmente quantos mais corpos teriam sido deitados
à avidez dos vermes a troco de uma sentença de morte mal empregada.
Da sacola que trazia às costas tirou
duas pás. Rapidamente começaram a escavar: não ia deixar o seu menino à mercê
dos bichos de uma terra estranha. O pó dava piruetas no ar, fazia remoinhos,
entrava-lhes pelas narinas e entranhava-se-lhes nos cabelos, mas elas, movidas
por uma vontade nascida sabe-se lá de que maneiras, não paravam de escavar um
buraco cada vez mais profundo. Palmo a palmo, sete palmos. Apenas o suor que
transpiravam abundava nos seus corpos: nem uma palavra, nem um suspiro de
lassidão, nem um pingo de tristeza. As mãos protestavam rompendo em bolhas, as
pernas e os braços curtiam sob o calor inebriante e nas costas pesava-lhes o
peso de uma tarefa bestial: tornar à brisa o cadáver de Carlos.
E ao fim de uma hora mais de trabalho,
ei-lo: Carlos Vasquez, ladrão de boa fé e de humildes tratos, condenado à forca
por um crime do qual apenas era responsável à falta de melhor réu, era
destapado dos seus recentes lençóis de argila; tinha as pálpebras cerradas num
rosto roxo pela extinção da vida e o cabelo sujo pela imundície da terra; as
suas mãos estavam cruzadas e negras. Notava-se, no pescoço, uma nódoa violácea
mais acentuada que a já purpúrea tonalidade do resto dos membros, parecida com
um colar, e os pés estavam muito estirados, como se tivessem sido moldados em
barro - há uma semana que o defunto era petisco da morte, necrófaga da
existência e, invariavelmente, da inexistência também.
- Passa-me a corda. Não chores, não
fales – ordenou a Mulher à filha, saltando para o buraco com destreza. -
Ajuda-me a içá-lo.
Quando, finalmente, recuperaram o
corpo, a atmosfera encheu-se de um aroma fétido a carne putrefacta e humidade.
A nudez dos campos verdes em redor vestia-se de luto: a natureza apiedava-se da
dor desta mãe, refulgindo a sua sempiterna saudade, que a morte, só por ser
indefinível, trará sempre aos homens este sofrer inexplicável que quase roça o
transe.
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