depois do sol
As grandes tragédias acontecem quando pousamos o casaco
sobre as costas rombas da cadeira, depois de um dia construído sobre a braçada
larga das tarefas corriqueiras, descalçamos os sapatos, despimos as calças,
depois a camisa de colarinho branco e transpirado, nos libertamos da roupa
interior e ficamos com nada
interpondo-se entre Eu e o Eu-Outro reflectido no espelho – a ligeireza com que
a nossa imagem nos é devolvida acompanhada pelas gotas de água e as impressões
digitais que se colam ao vidro assombra-me de uma forma nítida e transparente:
a humanidade espanta-me, como dizer?, sou-lhe
sensível.
Sensível de tal modo que o contorno da pele sobre o
músculo e a sombra de pequenos pêlos levantados à passagem de uma corrente de
ar serve de colchão à queda da realidade, da irrealidade, do abstracto, do concreto,
da fusão das duas coisas, ou da fusão de nenhuma delas sobre este Eu [e o
Eu-Outro] ali desenhado, enquanto réplica contrária de mim e sentido
perfeitamente distorcido.
Tudo cai
com a vertigem precipitante de um caminho que não tem mais solo para se
continuar, a partir do qual o confronto é apenas entre nós, o nosso corpo
pequenino e frágil, e a eventualidade do Vazio.
Desaba a agonia, enreda-se o desespero, enfiam-se os
dedos entre os fios parcos de cabelo, percorremos os subúrbios; porém, nunca
enveredamos pelo conhecimento ubíquo. Usamos o cérebro para, no vácuo da nossa
insignificância, conhecermos o cérebro – mas ele, na sua grande poltrona óssea,
está-se pouco importando para leis que o transcendem, e mantém-se escondido de
si, e de si para nós – em si.
Não somos mais do que isto, não somos mais do que
argamassa defeituosa, alimento para bichos, pedra bruta.
Difícil é integrar a velocidade na constituição das
coisas e admitir como certa a inextensibilidade de um conceito só por si
estático e pouco dado a manifestações de plasticidade. A vida foi feita para se
renovar, creio, mas sem efectivamente admitir o prefixo que indica “tornar a”;
como carros de alta cilindrada cruzando na diagonal um a outro ponto, é-nos
permitido marcar apenas a partida, e a viagem, doravante, faz-se sem qualquer
referência à hora de chegada. Quando damos por isso, perdemos o tubo de escape,
três parafusos e uma peça do motor, a máquina rebenta e
(...) depois do sol não há mais nada*
*David
Mourão-Ferreira
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