cair suspenso

Trago-me pela mão, abraço-me com frequência, durmo comigo. Sou térrea, de cá, massa com corpo de aspecto humano, os músculos palpitantes, os pêlos sensíveis às descargas eléctricas dos meus neurónios, contorno claro da pele. Tenho peso, porque
tenho massa, porque tenho consistência, essência. Existência? Passado.

Sou levada pela mão, frequentemente abraçada, e todos os dias, desde que sempre tem efeito em mim, é em mim que durmo. Sou etérea, a massa dissipa-se e conserva-se flutuante, e eu voo ao meu lado, suspensa por um fio invisível preso a nó firme a qualquer um dos dedos. Dos meus dedos. Não tenho peso, nem consistência, mas a virtude da existência dá-me a forma que ainda ninguém desvendou. Memória.

Volta a reflexão sobre a dicotomia - sempre tão válida - peso versus leveza. O peso manifesta-se pelos pés firmemente fixados ao solo, a leveza é indiferente ao olho, e se se adianta ou, pelo contrário, atrasa, logo um puxão seco sacode a trela, que me sacode a mim, na repetição de uma tensão que não é mais do que a corrida da onda ao longo do fio. Não me posso perder, não posso fugir de mim. Sou passado, porque sou memória, mas não sou memória por ser passado. Sou talvez consistência existente, ou mesmo uma existência consistente - desde sempre, até sempre.

E sufoca, e aperta, e é clausura infindável, magistral, grotesca, dolorosa; ninguém disse que era fácil. Isto é digno de assombro. Por exemplo, num destes dias amargos de inverno, sentei-me comigo na soleira de uma porta; encostada à madeira fria, tinha-me instável pairando, de cabeça para baixo, acima da minha própria cabeça. Foi então que eu (e eu também) vi uma rapariga consigo presa por um fio, ainda mais curto que este, passar apressada por mim, para ser adiante detida por um qualquer delito dos seus sentidos: subitamente abranda a passada, encurta a distância entre cada pé, até que os dois se posicionam lado a lado. Fecha os olhos e inspira profundamente, tinha chovido até há poucas horas, e decerto o cheiro da terra impregnada de água lhe impregnava também todos os limbos do cérebro, fazendo nele rebentarem ervas tenras e céus cor de chumbo, carregados de fundamento, árvores erguidas como demónios  solenes e desordenados, gloriosamente despidas ao sabor languido do vento. Ter-me-ia surpreendido tão-só porque já ninguém pára sem timidez para olhar com o nariz um bocado de terra húmida, e despertar do peso o estado vago da sua leveza. Porém, algo mais aconteceu: subitamente, duas lâminas luziram, sibilando a margem afiada pelo fio da rapariga, que se mutilava. E subiu, como um balão de hélio, rumo a nenhures - leve, levemente -, enquanto parte de si ficava ali, afundando – lentamente.

- Em que dia nasceste? – perguntei, por fim.
- Não sei, não me lembro… Que é nascer?

Outra data se apagou do calendário, como murcharam as ervas recentemente rebentadas, se esvaziaram os céus carregados da sua memória e tombaram as árvores colossais. Vi-a subir, subir, desaparecer. Quiçá, esteja por esta hora dissolvida no Universo, bombardeada por meteoros, dilacerada pela matéria cósmica, devorada pelo vazio.

- Vou morrer - concluí, palavras que eu repeti: vou morrer.
- Mas nunca me deixarei, nunca - acrescentei.

E o importante é que tudo isto irá sempre a abrir caminho, ou então, a encerrar a marcha. Se chorar, é por saber que o importante não tem lugar para ficar, que o importante, essa coisa tão sem interesse, ironicamente, não fica cá a lembrar ninguém, vai comigo, vai connosco - vai e isso basta, que um passado sem homens, não seria pensado. É, afinal, uma viagem ingrata, esta cumprida do futuro ao presente, e do presente imediatamente a um pretérito qualquer: o pretérito esquecido.

***
Um homem sem memória é um homem sem passado
Albert Camus

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