a sesta - um




 autor desconhecido
.
O sol abrasador das duas encandeava Santa Cruz, fazendo da multidão uma massa disforme que combinava sombras e calor, tão abafada que os olhos apenas conseguiam extrair manchas plúmbeas e nevoentas de entre todas as coisas que compunham a vila; caras deformadas pela intriga inquiriam a Mulher e a Criança que, de costas direitas e olhar sobranceiro, atravessavam a rua, encabeçando uma pose de dignidade e altivez ímpares. Eram figuras de certo modo peculiares, que transpiravam, do alto da sua majestade subtil, um toque qualquer de excentricidade, a ponto de alguns velhos, de palito na boca e boina a cair sobre os olhos, interromperem o seu momento de pasmo, a que vulgarmente apelidavam de sesta, e as olharem por cima das barrigas grotescas (alguns eram tão gordos que os botões das camisas pareciam gemer por menos massa gorda, havendo mesmo um ou outro que se rendia à força dos bandulhos e era projectado para dentro de uma qualquer sarjeta). Até o gado feminino espreitava do conforto refrescante dos seus lares só para as poder observar com maior minúcia, alertadas, quem sabe, por alguma velha carcaça carpideira que se alarmou com tão inesperada visita.
Contudo, a entrada destas duas personagens na pacata vila de Santa Cruz, por mais admiração que causasse naquela gente abandonada no interior ardente de uma Venezuela há muito esquecida, não seria, por si só, motivo de tanto interesse, não fosse, salvo o impacto inicial causado na população, as acções que irei agora narrar.
Instigadas por um qualquer chamamento sobrenatural, a Mulher e a Menina moviam-se de rua em rua, como se, não obstante o facto de nunca lá terem estado, conhecessem Santa Cruz desde sempre. Quando deram por elas, já o portão do cemitério rangia e estas duas criaturas entravam por ali adentro: procuravam uma morada perdida entre as moradas de tantos outros perdidos, serpenteando entre as campas, todas de pedra mármore, dispostas em filas horizontais e paralelas umas às outras, como que lembrando aos vivos transeuntes que a morte é, de tão repleta de vazio, um complexo organizado da matéria decomposta - afinal, nada há de mais simples para o fruir da condição humana que o extermínio do pensamento, pai de tantas dores. De cada campa espreitava um rosto sereno e descolorado enclausurado num retrato. A Criança tremia ao ver aqueles sorrisos, certamente repletos de ignorância, colados às pedras que cobriam pedaços de gente provavelmente inexistente; sentia uma miscelânea amarga de sensações, que variava entre o medo e a repulsa; chorava pianinho, soluçava tenuemente, cozinhava ideias tristes. A Mulher, apercebendo-se do choro cuidado da filha, estacou o passo e fitou-a cruamente, agarrando-a pelos ombros com leves sacudidelas.
-Ouve o que te digo, minha menina, este é apenas um local de transição na Terra. Não voltes a chorar, eu não quero, sob que pretexto for, que voltes a chorar! Aqueles abutres não merecem o teu sal.

Comentários

Mensagens populares