a bruxa

Vista do fundo da colina, as suas paredes parecem ainda mais tortas, trepando arrepiadas entre as pedras, a massa e a madeira, cada andar uma divisão, cada divisão um pedaço de vento entalado.
A cozinha tangente de tachos e cascas a transbordar da lata dos porcos, com a lenha bem escalada junto ao fogão; um caldeirão repousa sobre as labaredas, libertando suspiros e gemidos, fumegante e mal-cheiroso. Os armários despidos de vidraças e brilho, as cadeiras despregadas, as cortinas rombas.
Sobem-se as escadas de madeira negra e alcança-se uma divisão escura, cujo silêncio apenas é interrompido pelo borbulhar solitário da água que ferve em baixo ao calor das chamas. Pesados reposteiros de veludo cor de alcatrão pendem adiante das janelas, travando os rasgos de luz que insistem em iluminar qualquer pedaço de sala; em baixo, as bainhas roçam no chão, e o espesso manto cai em monte, cego e entorpecido. Dois cadeirões abandonados a um canto, virada a frente de um para a frente do outro. A mesa do chá, como chuva oblíqua em cima da carpete horrorosa, suporta os estilhaços de uma chávena partida, a mancha do líquido derramado e grãos de açúcar dissolvidos - e por dissolver. Resta, então, assinalar a cabeça de um desgraçado javali, cujo corpo, decapitado, há muito deve jazer nas entranhas de quem o comeu e depois o digeriu.
Mais um lanço e o quarto: cama de dossel mesmo no centro e uma bonita teia prateada a adornar-lhe o ângulo acima da cabeceira. Em frente, uma janela minúscula sem cortina, a cómoda desarrumada e desencostada da parede e o espelho tombado e quebrado a um canto. Frascos de perfume e caixinhas partidas, a escova cheia de cabelos entrançados e um boião de pó repousam na mesa ao lado do lavatório. As gavetas estão meias fechadas, outras têm um bocado por abrir. Os lençóis desalinhados e a colcha de renda amarela (assinalando que um dia há-de ter sido branca) quase, quase beijam o soalho.
Por fim, como que coroando esta singular estrutura, uma última divisão, rainha de todo o caos da casa: o sótão – vassouras, baús, pó e mais teias, livros espalhados por todo o lado, abertos e com páginas arrancadas, estripados, descarnados, cacos de tudo varridos e guardados num monte, lençóis fazendo manto a tudo quanto puderam abraçar. As portadas por trancar, batendo com estrépito ao movimento massivo do ar, guinchando nas dobradiça, criam um ruído tão assustador que arrepia as gentes pálidas que das pinturas envelhecidas soltam os sorrisos mais sinistros e engasgados.
E o vento que empurra os reposteiros e as portadas, assobia ainda à volta do galo mal oleado que se empoleira no telhado, girando vertiginosamente sobre o seu próprio eixo e anunciando, pelo som do ferro contra ferro, a falta de óleo nas engrenagens. Não há pi vezes raio que lhe conte os quilómetros feitos em noites de turbulência.
As heras erguem-se pelas paredes deformadas, recortando-as no cimo do jardim de mandrágoras que veste a colina, caladas enquanto as suas raízes se mantiverem afogadas na terra. As abóboras estão em pilha, encostadas à única porta que dá serventia à casa.
Do lado de cá do portão, um grupo de crianças fixa os olhos no galo - tão longe, tão alto, tão veloz –, os mesmos olhos que mantêm bem abertos, de pestanas hirtas, e, de queixo caído, imaginam a bruxa mexendo o caldeirão onde sapos e ervas venenosas cozem e rebolam na efervescência da sopa maldita. Não lhes sobra coragem nem para partirem ovos podres contra o portão – sabe-se lá se não acordam os morcegos e as corujas...

O que vale, dizem grandes e graúdos, é que nada disto existe.

O que vale, digo eu, é que eles mentem ingenuamente: nessa noite, a bruxa juntou ao caldeirão três dedos gordinhos de três roliças criancinhas, e depois do saboroso manjar, subiu ao sótão, pegou na vassoura, e partiu.
A casa? Lá ficou, no topo da colina de mandrágoras, perecendo ao passar do tempo, resumindo-se, como esta história, a pó e meia dúzia de olhadelhas.

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