contos antigos de gente que nunca existiu

Eis a segunda parte d'O Suicídio de Tiago Marques, que em tempos morou n'A Chuva Molhada, quando ainda havia hipótese de afirmar - como se alguma vez possível fosse a dúvida quanto a este ponto - que seria, efetivamente, molhada a água que troveja do céu. Note-se que nesse tempo outros luxos além deste eram permitidos, como o de questionar a identidade; trocava o nome porque, enfim (ou por princípio), não identificava a causa com o meio e fingia assim ser Leonor na hora de assinar o relato da imaginação. Depois assumi-me Ana e deixei-me de merdas, do mesmo modo que o Pedro deixou de ser Miguel e a chuva, molhada, passou a ser só chuva: inquestionavelmente chuva. deve ter sido mais ou menos na mesma altura em que deixei de fugir de mim, ou assim julgo. Oxalá não esteja enganada, o que para o caso é irrelevante.  
Repito: aos dezasseis anos estas particularidades são permitidas e facilmente se perdoam, que há muita gente em confronto cá dentro e pouco por onde extravasar a multidão; apaziguei-me. 

***

(...)
Com passos suspensos no silêncio da casa, os movimentos graciosos degeneravam na imundice da alma. Os seus olhos estavam vidrados no maldito objecto, e flashes das noites de amor louco, desregrado, passado longínquo que o fazia recordar (e acreditar) que já fora homem poderoso, que lançava os dados e fazia a sua jogada macabra, utilizando para o seu vício a virtuosidade inocente de Margarida, passavam-lhe qual rajada de ar.
Sentia-se destronado, mas o sentimento de poder regressou embrulhado numa torrente de emoções quando, finalmente, tomou posse do serrote. Os seus dedos fortes e insensíveis deslizaram pelo metal gelado; sentiu um arrepio desdenhoso trepar-lhe pelas costas acima. Era um apelo de coragem, o serrote gritava por ele, convidava-o a consumar a sua finalidade. Mirou-o com uma delicadeza pouco característica, parecia adorar aquele objecto.
A chuva começava a cair na rua, suavemente. Caía em pequenas lufadas, empurrada pelas massas de ar. Escurecia, e Tiago aproximou-se da janela aberta, com o olhar louco fixo no serrote, enquanto o acariciava.
O rosto de Margarida assaltava-o do seu poiso; exercia nele uma força incrível, inabalável, movendo-o na sua demanda.
Queria vingança. Queria matar a sede insaciável de provocar sofrimento. Queria voltar a sentir-se no domínio do poder. Queria atingir Margarida em cheio no seu ego, como fizera tantas vezes antes. Não tolerava ter sido ignorado e, após dois meses de calma que adormecia o ódio, não conseguiu mais manter adormecido o monstro que carregava consigo.
Chegara a hora.
Aproximou da sua pele o metal gelado e sentiu aqueles dentes de aço perfurarem-lhe a epiderme. A dor excruciante passou de axónio para axónio, destruindo-lhe os tecidos. Contudo, invadiu-o um prazer imenso, uma alegria tremenda, e riu. Soltou uma gargalhada tão profunda: o monstro tinha acordado.
E a campainha tocou. Tiago já delirava com a dor, sentia elevar-se para um outro patamar, mas o instinto incitou-o a parar. O sangue quente brotava-lhe dos pulsos, e um rasto de fluido foi deixado para trás. De pernas dormentes aproximou-se da porta, só instinto o movia, não estava nos seus planos deixar a tarefa pelo meio, mas tinha de abrir a porta; talvez do outro lado estivesse alguém que ele queria que o visse assim.
Estava certo. Quando, de vista esgazeada pelo sofrimento camuflado de prazer doentio, se deparou com a mulher do retrato, a euforia apoderou-se dele. Margarida gritou. Tiago voltou a rir. Margarida estava paralisada, sentia-se novamente subjugada. Tiago enfraquecia, as suas pernas vibravam, dos pulsos corria mais sangue, mas voltou a sentir-se o supremo senhor de Margarida.

A morte já não habitava em parte incerta. Agora, habitava nele. Morreu de sorriso nos lábios, deliciado por ter tido como última visão o pavor de Margarida estampado no seu rosto, como nos bons velhos tempos.

30 de Abril de 2008
Leonor

Mensagens populares