o dia das flores silvestres


Nasci num lugar tão pequeno que não cabe no mapa de Portugal o nome desse lugar. E só muito recentemente, coisa de três ou quatro anos, o Google incluiu esse lugar nos lugares que o mundo tem. Não admira: uma estrada ladeada de pomares, crianças em número insuficiente para encher as duas salas da escola primária e o seu minúsculo recreio, mais tratores do que humanos, casinhas parcas. Um lugar que não deixa de ser bonito da sua solidão e isolamento desoladores, vedado a céu azul e árvores de fruto, um vento demoníaco em dias de inverno, mil barulhos e cantigas que se consomem no silêncio dos homens. 
Havia uma tradição, quando ainda a escola primária estava aberta para cumprir o seu propósito, de partir neste dia à procura da espiga. A mim a espiga não me dizia muito, que eu gostava mesmo era das papoilas que compunham o ramalhete - de percorrer com os olhos o campo e descobrir a mais vigorosa, entre a vastidão de papoilas murchas. 
Era um dia de fortuna, este dia da Espiga: saíamos da escola num grande grupo, bem cedo. E tão-simplesmente porque tudo me parecia grande naquela época, subíamos com lamúria as ladeiras da nossa terra, tão íngremes e impossíveis, mesmo que nem um quilómetro completassem. Preparávamos um lanchinho, não fosse a fome atacar-nos de surpresa nos entretantos desta odisseia. 
O sapateiro, por exemplo, era da dimensão do tempo - infinito! E todos apostávamos, porque éramos pequenos e ingénuos, que teria mais de cem anos, e em cada ano de vida cem estórias para nos contar (descobri há tempo que morreu no ano passado, e não tinha mais de oitenta e cinco).
Invadíamos, com a devida autorização, o quintal da avó da Lúcia, que tinha flores amarelas em quantidade suficiente para as necessidades de todos os miúdos, enfiados nos seus bonés porque, enfim, às onze da manhã o sol é um amigo perigoso. Lembro-me de ficar muito corada sem motivo algum. Aquele esforço de caminhar entre as ervas daninhas, evitar as urtigas e esquivar-me ao calor deixava-me sem fôlego quando, na base, a reserva já era curta.
Voltávamos depois de mergulharmos a cara na fonte das Mestras, como quem finge que bebe. A roupa de uns mais molhada que a de outros e o regresso fazia-se de satisfação - os nossos raminhos, a sensação de dever cumprido, que a riqueza, durante um ano, estava garantida para a casa de cada um. 

Tantos anos depois, não encontrei papoilas nem espigas nem as mesmas flores amarelas, talvez porque estou longe, longe, longe. Longe como nem imaginava, naquele tempo, que alguma vez pudesse estar, que Lisboa já era estrangeiro e Espanha um planeta diferente. Mas saí de casa na mesma, disposta a cumprir o mesmo ritual de esperança e prosperidade. Foi nos ninhos de flores silvestres que reinventei o ramo do dia da espiga da minha infância, embrenhada em tantas memórias de dimensões diferentes.

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