o jogo da cabra cega - I
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Parte I - A Velha dos Cavacos
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É
velha. Nome? Mais uma vez, não lhe dou nome; era apenas uma velha, uma vulgar
corcunda (sem verrugas ou outros apetrechos repugnantes) deformada pela carrega
morta de uma existência pardacenta, quase extinta; não passava de um cepo
arcaico moído pelo caruncho e com bichos parasitando as dobradiças. Pelo
caminho de terra negra, arrastava a sua triste figura escurecida pelas sombras
dos salgueiros, enterrando os pés cobertos por sapatilhas de lona em algumas
poças de poeira misturada com o orvalho de Abril. Que fim de tarde tão
narcótico: lá ia ela foçando a terra, vagarosa e escrupulosamente, curvada pelo
peso absurdo que a miséria lhe fazia suportar. Respirava o aroma húmido de chão
lavrado por milhentas pegadas que ali depositaram a sua nódoa irreparável. Eram
vestígios de gente.
A
sua vida era assim: apanhava cavacos com o auxílio zeloso das suas cataratas e
depois vendia-os na cidade, não dando a gente da urbe mais valor ao fruto do
seu labor (árduo labor) que a uma centena de palitos. Não sabem eles que um
cavaco, sendo feito da mesma matéria-prima, exige um certo calibre, um dado
comprimento e uma quantia certa de água (muito húmido não arde, seco demais
quebra); há muita ciência num cavaco e muitas frieiras nas mãos lívidas que o
colhem; um palito, por sua vez, não é mais que o resultado bruto da obra de um
corpo artificial, de programas de produção em massa.
Desta
maneira farejou o seu trilho a nossa humilhada velha, até a sua vista
(subalterna do mirrado campo de visão) conseguir, custosamente, alcançar o
casebre velho a que decidiu chamar casa. E dentro da casa só havia trapos,
móveis partidos e loiça rachada, lixo amontoada na sarjeta livremente
aberta e cobertores empilhados numa espécie de cama arrumada a um canto. Depois
de ter varrido a casa, a velha acendeu o lume e pôs a água a ferver. Abriu a
lata do café e disse:
-Não
tenho café.
Não
tinha café. Não tinha leite, nem açúcar. Não havia mais do que três côdeas para
roer com a placa desdentada. Rugia o estômago, tal era a fome que a derreava.
Sentia-se febril, aflita, atrofiada… De repente, agravavam-se as suas cataratas
e descaía o amontoado humano numa cadeira de pernas tortas… Parecia amargura de
morte, e um fio de baba soltava-se da boca cujo lábio tombava, enquanto os
olhos se reviravam, timidamente.
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