o jogo da cabra cega - I

.
Parte I - A Velha dos Cavacos
.

"Old Man", Picasso
.
É velha. Nome? Mais uma vez, não lhe dou nome; era apenas uma velha, uma vulgar corcunda (sem verrugas ou outros apetrechos repugnantes) deformada pela carrega morta de uma existência pardacenta, quase extinta; não passava de um cepo arcaico moído pelo caruncho e com bichos parasitando as dobradiças. Pelo caminho de terra negra, arrastava a sua triste figura escurecida pelas sombras dos salgueiros, enterrando os pés cobertos por sapatilhas de lona em algumas poças de poeira misturada com o orvalho de Abril. Que fim de tarde tão narcótico: lá ia ela foçando a terra, vagarosa e escrupulosamente, curvada pelo peso absurdo que a miséria lhe fazia suportar. Respirava o aroma húmido de chão lavrado por milhentas pegadas que ali depositaram a sua nódoa irreparável. Eram vestígios de gente.

A sua vida era assim: apanhava cavacos com o auxílio zeloso das suas cataratas e depois vendia-os na cidade, não dando a gente da urbe mais valor ao fruto do seu labor (árduo labor) que a uma centena de palitos. Não sabem eles que um cavaco, sendo feito da mesma matéria-prima, exige um certo calibre, um dado comprimento e uma quantia certa de água (muito húmido não arde, seco demais quebra); há muita ciência num cavaco e muitas frieiras nas mãos lívidas que o colhem; um palito, por sua vez, não é mais que o resultado bruto da obra de um corpo artificial, de programas de produção em massa.

Desta maneira farejou o seu trilho a nossa humilhada velha, até a sua vista (subalterna do mirrado campo de visão) conseguir, custosamente, alcançar o casebre velho a que decidiu chamar casa. E dentro da casa só havia trapos, móveis partidos e loiça rachada, lixo amontoada na sarjeta livremente aberta e cobertores empilhados numa espécie de cama arrumada a um canto. Depois de ter varrido a casa, a velha acendeu o lume e pôs a água a ferver. Abriu a lata do café e disse:

-Não tenho café.

Não tinha café. Não tinha leite, nem açúcar. Não havia mais do que três côdeas para roer com a placa desdentada. Rugia o estômago, tal era a fome que a derreava. Sentia-se febril, aflita, atrofiada… De repente, agravavam-se as suas cataratas e descaía o amontoado humano numa cadeira de pernas tortas… Parecia amargura de morte, e um fio de baba soltava-se da boca cujo lábio tombava, enquanto os olhos se reviravam, timidamente.

Comentários

Mensagens populares